10 musicais para ver antes de La La Land | One from the Heart

Um acídico drama romântico filmado como uma alucinação surreal numa Las Vegas sonhada, One from the Heart é uma experiência incomparável.

 


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Na última página falámos da péssima reputação de New York, New York e o modo como ainda hoje esse filme tende a causar desgosto ou desprezo entre os fãs de Martin Scorsese. No entanto, por muito mal recebido que tenha sido, o fracasso do projeto foi eventualmente ultrapassado por Martin Scorsese. Não podemos dizer o mesmo do musical desta página, o infame One from the Heart que foi uma catástrofe tão grande entre críticos e audiências que levou o seu estúdio à falência. Ainda mais grave que o fim dos estúdios Zoetrope, foi a morte do sonho que Francis Ford Coppola tinha de renovar o cinema americano através de uma liberdade artística nunca antes vista em Hollywood. Não obstante a ousadia e ambição desmesurada da sua edificação, One from the Heart foi um inequívoco flop e marca o ponto de viragem na carreira de Coppola, que passou de um dos mais respeitados cineastas do mundo a um autor meio miserável em busca de mercê de produtores generosos.

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Afinal, o que é One from the Heart? Essa pergunta é difícil de responder, pois estamos perante uma das criações mais bizarras do cinema americano. Por um lado é um musical ao estilo dos grandes clássicos em toda a sua efusiva fantasia artificial, por outro, é um retrato quase neorrealista de um casal cuja relação é, no mínimo, um cancro venenoso a destruir a vida dos dois. Acrescente-se a isso uma genial banda-sonora de Tom Waits que se manifesta em voz-off representativo do pensamento ou espirito das personagens, assim como uma grande falta de enredo e temos uma proposta quase impossível de imaginar. Se estivermos a ser sinceros, não admira que One from the Heart tenha tido dificuldade em encontrar público.

Mas chega de miserabilismo, pois One from the Heart é uma obra-prima. Quer dizer, é uma obra-prima no sentido em que consideramos o cinema como um meio de expressão artística audiovisual. Coppola tem essas óbvias considerações em mente pois o seu filme pode ter anemia narrativa, mas a sua execução formal é algo tão perfeito, tão exuberante e peculiar que a experiência de ver o filme num cinema quase se equipara a um sonho lúcido. Para esse efeito, Coppola usou cenários explicitamente construídos entre as quatro paredes de um estúdio para simularem uma versão sonhada de Las Vegas, uma iluminação que traz cor e néon a uma estética francamente expressionista, movimentos de câmara tão complicados que é praticamente impossível perceber a engenharia por detrás da sua criação assim como uma montagem que desrespeita qualquer lei da continuidade espácio-temporal. O efeito final é tão específico na sua hubris, que podemos com absoluta certeza afirmar que não existe nenhum filme semelhante a este em toda a história do cinema.

É evidente que se podem estabelecer relações de influência e inspiração com vários clássicos do cinema musical e com a obra de uma série de cineastas cuja carreira em Hollywood ganhou nova fama com o advento da teoria de autor. Max Ophüls, por exemplo, parece ser a mão fantasma que guia a steadicam ensandecida de Coppola. Por outras palavras, existem as marcas do classicismo na conceção de One from the Heart, mas esses aspetos são levados a um extremo tão grande que se distorcem e resultam em algo bizarro e inequivocamente irreal. Quase podemos acusar Coppola de ter aqui obtido o primeiro, e talvez o único, filme Maneirista.

Talvez nos estejamos já afundar em demasiadas cambalhotas teóricas, pois One from the Heart, apesar de toda a sua experimentação e violento artifício, é uma obra que vive e morre no poder esmagador da emoção humana. Essa é também a essência da apreciação de uma obra escapista, mas este filme é tão cruel que acusações de escapismo parecem simplesmente estúpidas. Só que é difícil não admitir como o espetáculo formalista orquestrado por Coppola acaba por atenuar a acidez do seu retrato humano, ou como a manifestação fantasmagórica das músicas melancólicas torna o horror anti romântico em algo quase sedutor.

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No final, o próprio filme usa a promessa recorrente de uma vida fora da claustrofobia artificial de Las Vegas como o sumário da sua tese, tanto a nível intelectual como emocional. A dor do quotidiano consegue ser insuportável e nós criamos fantasias, conjuramos sonhos e apoiamo-nos na esperança como modo de sobreviver. Por isso, por muito monstruosa que seja a contradição entre a vida dos protagonistas e a expressão estilizada da sua existência, é uma dinâmica que acaba por se revelar intrinsecamente humana. Ainda mais astuta e devastadora é a derradeira recusa da saída de Las Vegas, algo que acaba por ilustrar a recusa em sair do mundo de fantasias dolorosas pois a alternativa de uma vida a enfrentar as deceções e dificuldades da realidade é demasiado horrenda. Este não é um filme feliz, de certo modo é o inverso emocional de La La Land, mas, na experiência de o ver, existe prazer, existe espetáculo e existe a transcendente beleza do cinema puro. E não tenham dúvidas, este é um dos filmes mais espetacularmente belos de sempre.

 

 


Vê também o vídeo comparativo sobre as inspirações de La La Land


 

Assim termina a nossa lista de recomendações musicais, mesmo a tempo da estreia nacional de La La Land. De sobremesas musicais dos anos 30, chegamos a tortuosas experiências na década de 80, mas quem sabe qual é o futuro do género?

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