Orlando Pantera, a Crítica | Documentário duplamente premiado no IndieLisboa
“Orlando Pantera,” documentário sobre o músico cabo-verdiano com realização assinada por Catarina Alves Costa, ganhou o voto do público na 22ª edição do IndieLisboa. A obra também triunfou com os júris oficiais, tendo conquistado o prémio principal da secção IndieMusic.
Orlando Pantera é um nome de peso no contexto da musicalidade cabo-verdiana. Nascido na Ilha de Santiago em 1967 e falecido em 2001, a sua carreira foi tão curta quanto impactante, tendo desencadeado algo compreendido entre o movimento e a revolução. Há quem fale na geração Pantera que surgiu sob a influência do seu trabalho, tanto composições como performances, mesmo que jamais tenha completo um álbum de estúdio. Estava prestes a fazê-lo quando morreu, mas esse projeto nunca se concretizou. O seu legado assim vive de vídeos e outras gravações ao vivo, textos, fotos e as memórias de todos aqueles que a arte de Orlando Pantera marcou.
O espólio audiovisual é limitado, mas rico, e serviu de base para “Orlando Pantera” de Catarina Alves Costa, um projeto documental que gesticula na direção das convenções cinebiográfica. Dito isso, não as segue à letra e daí vem muita da sua qualidade, logo evidente nas primeiras passagens. A simplicidade reina nessa abertura, com o artista em ação, olhando para a câmara e cantando em crioulo, de violão na mão e um sorriso sempre desenhado na face. Será impossível negar a beleza do momento, um espetáculo humilde que não requer nenhuma contextualização forçada para mexer com o espectador.
Venham celebrar a música cabo-verdiana.
Sem sair do registo académico do 4:3, Alves Costa corta do vídeo de Pantera para a paisagem cabo-verdiana, deixando-se enamorar pelas imagens tropicais em mil tons de verde e ouro pálido. Em voz-off, faz-se o elogio a Pantera, descrevendo-se o artista como uma luz. E, no ecrã, o sol trespassa as copas das árvores, como que manifestando a presença fantasmagórica de Pantera num discurso de metáfora. Voltaremos a tais lirismos lá mais para o fim, quando a figura da libélula e sua vida curta servem para celebrar o artista nas suas próprias palavras. Por regra geral, contudo, o filme de “Orlando Pantera” evita os simbolismos mais descarados.
Somente se acentua o que já é óbvio, essa ligação entre Pantera e a terra que o viu nascer, crescer, ganhar voz e visão. Um laço que perdura, independentemente da presença do homem. Vejam-se os muitos momentos musicais, récitas e jam sessions, pequenas congregações de amigos e colegas que são muito mais íntimas do que aquilo que se costuma ver neste tipo de projeto. Pantera é eterno na medida em que estas partilhas artísticas continuem, seu legado indissociável de considerações sobre comunidade e cultura. Efetivamente, o filme usa estes momentos para criar uma continuidade entre passado e presente.
Possibilita-se uma aliança de tempos e de gente, todos parte da mesma comunhão. Quiçá até a audiência se possa sentir parte do coletivo em homenagem a Orlando Pantera e tudo o que o seu nome significa. Dito isso, este documentário evita muitos dos vícios mais persistentes do seu subgénero. Nunca se cai num culto de personalidade, por exemplo, e a vida privada do artista só se examina na medida em que influenciou o trabalho ou porque os seus entes queridos o incluem como parte do seu testemunho para as câmaras.
E aí está outro detalhe interessante. Alves Costa evita o texto sobreposto à imagem, evitando legendagens desnecessárias e até apresenta figuras que nunca são identificadas com grafismos. O que interessa é o que eles dizem, não a importância individual de cada um, sendo que alguns são artistas de renome comparável ao de Pantera. O que interessa é o apreço que têm pela música e a sua análise séria, sem nostalgias em demasia ou vanglória sem sentido crítico. O que interessa é a música. Nesse aspeto, “Orlando Pantera” volta a destacar-se de tantos outros filmes semelhantes, surgindo-nos lúcido e cheio de curiosidade, uma paixão pela música que vai além da devoção para com o seu criador.
O legado de Orlando Pantera não será definido pela tragédia.
Pensemos nas meditações em contexto académico e pedagógico. Como quando o filme propõe a reflexão sobre a confluência de tradições multiétnicas pela parte do artista, uma polirritmia pan-africana que Pantera articulou no seu trabalho e trasladou da percussão para a viola. Muito do seu lado mais pioneira nasceu nesse desenvolvimento sobre a tradição do batuku, instrumentalizando aquilo que antes se fazia somente com corpo e voz, trazendo influências do jazz e uma melancolia sentida. Também há uma legitimação do batuku, mesmo antes de Pantera expandir os horizontes e ir rumo à Europa e às Américas como parte da equipa de “Uma História da Dúvida,” com Clara Andermatt e João Lucas.
O documentário torna-se mais convencional e mais pesado à medida que avança, lentamente tomando a forma de uma elegia. As imagens da casa vazia nos dias de hoje, a voz em lamento no fundo, o fantasma sugerido nesta assombração musical e as fotos cada vez mais estáticas que vemos – tudo contribui para uma mudança de tons. Lentamente, Orlando Pantera vai deixando de ser uma força presente em diálogo trans-temporal sobre a sua arte para ser o eco ensurdecedor de uma ausência. Felizmente, até ao fim, “Orlando Pantera” mantém-se um trabalho respeitoso, tanto para com o sujeito como para audiência, optando por reticências e contenção onde outros trabalhos enfatizariam o melodrama. A vida e o legado de Pantera não são uma tragédia. São um milagre.
Orlando Pantera, a Crítica
Movie title: Orlando Pantera
Date published: 14 de May de 2025
Country: Portugal, Cabo Verde
Duration: 107 min.
Director(s): Catarina Alves Costa
Genre: Documentário, Música , 2025
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Cláudio Alves - 75
CONCLUSÃO:
“Orlando Pantera” é um filme focado no trabalho do artista e na sua arte acima do culto da personalidade, no melodrama da vida e no sentimentalismo que se podia atirar ao espectador. Esses vícios dominam outras cinebiografias documentais de artistas musicais, levando ao destaque do projeto em contextos como aquele do IndieMusic. Catarina Alves Costa escolhe uma estratégia disciplinada e contida, escolhendo a simplicidade do engenho para articular uma celebração desse ícone da música cabo-verdiana.
O MELHOR: “O facto de o Pantera não ter gravado é daquelas coisas cósmicas…isso aumenta o espectro da curiosidade sobre a musicalidade dele…ajuda a que haja uma leitura mais límpida das composições…a música contém uma verdade.” Toda esta passagem é gloriosa, especialmente quando termina pontuada por um vídeo caseiro em que Pantera se engana na canção. A imperfeição da música é o que temos e há uma preciosidade muito sentida nisso. Podia ser um erro ressentido, mas emerge como um tesouro.
O PIOR: Apesar de muitas qualidades, “Orlando Pantera” ainda se debate com as limitações deste modelo cinematográfico. Além disso, é curiosamente relutante em examinar as dinâmicas raciais que se abateram sobre o artista fora de Cabo Verde. É notório como a aclamação internacional está contingente na validação de brancos. No entanto, o filme permanece relativamente apolítico e jamais questiona a dinâmica em jogo.
CA