Papillon

Papillon, em análise

As memórias de Charrière voltam a revisitar-nos como um pesadelo insuportável, que não conseguimos deixar de tolerar. Hunman e Malek não eclipsam Mcqueen e Hoffman no original, mas têm os seus momentos…

Papillon
Charlie Hunman (Henry Charrièrre ) na Ilha do Diabo.

“Papillon”, ou borboleta, se preferirem, já é um nome consensual no seio literário há quase cinco décadas, desde que as memoires de Henry Charrière (ou René Belbenoit) obtiveram aval de publicação em sessenta e nove, e se tornaram num best-seller mundial. Hoje em dia, são consideradas um clássico moderno da literatura francesa, com 239 edições publicadas em todo o mundo e 21 traduções em outras tantas línguas. E pese embora alguma desconfiança em torno da verdadeira identidade do autor de “Papillon”, até conhecerem a luz do dia, os seus pensamentos agonizantes na Ilha do Diabo permaneceram mudos na solidão de uma folha de papel durante quarenta anos, altura em que é absolvido pelo governo francês de um ato criminoso que não cometera. Mas regressemos aos loucos anos trinta parisienses, aonde conhecemos um libertino Henry Charrièrre (Charlie Hunman) com uma habilidade inata para arrombar cofres recheados de brilhantes. Numa Paris de corações apaixonados e impulsos pecaminosos, continuamos a seguir Henry com Nanette (Eve Hewson) envolta pelos braços e uma garrafa apontada para baixo, enquanto expiram os vícios mundanos e inspiram a loucura dos sonhos cor de rosa que, supostamente, deveriam acabar bem.

(…) Noer oferece-nos uma filmagem documentarista in-your-face, repleta de fervor e adrenalina, que ambos os atores conseguem capitalizar de forma convincente.

Mas nunca acabam, a partir do momento em que Henry decide ser ganancioso e é indiciado por crime de homicídio. Julgado e condenado a pena perpétua na temível colónia penal da Guiana Francesa (Île du Diable), o seu corpo rochoso e a sua mente inquebrável começam imediamente a cumprir uma sentença ríspida e pungente a caminho desse inferno com cara de paraíso. Enclausurados e agrilhoados em celas minúsculas, escuras e sobrelotadas como cães miseráveis à mercê da morte, Henry não se deixa vergar pelo infortúnio do seu fado, imiscuindo-se, desde logo, na venda de um arriscado plano de fuga ao abastado falsificador de dinheiro, Louis Dega (Malek). E o que estaria talhado para se qualificar apenas como uma mera transação utilitária de necessidades, rapidamente esculpe-se num bromance de dois reclusos presos à persecução da mesma ideia binária. Dega só sobrevive com Henry, e Henry só escapa com Dega. É a eterna dialética elementar de “Papillon”, que o argumentista Aaron Guzikowski (Raptadas) não poderia abster-se de realçar em face da compressão machista inerente a uma fita só povoada de homens privados da sua liberdade. Contudo, o grosso dos diálogos mantém-se no tête-à-tête, com o recato de um segredo privado nunca seguro.

Papillon
Louis Dega (Rami Malek) e Henri Charrière (Charlie Hunman) na Ilha do Diabo.

Mas aqui e ali, Guzikowski atira-nos com larachas de algum sarcasmo pessoal e patriótico, aludindo à exploração das fragilidades de cada ser humano e à necessidade de uma conexão emocional para mesclar defeitos e potenciar virtudes contra um sistema esclavagista. E mais sentido fará tal premissa, quando nos é pintado um quadro tão primitivo e pútrido de uma sociedade assustadoramente imoral, em que o realizador dinamarquês Michael Noer não se coíbe de exacerbar minimamente, ensopando a tela de sangue e carne para canhão. De resto, Noer consegue mesmo enojar-nos, seja com uma cabeça dissecada pela guilhotina a saltitar para um balde de excrementos ou com um corpo mutilado com as entranhas saídas para fora, sem que tenhamos tempo para uma preparação visual antecipada. E é neste ambiente de cortar tudo à faca, que Charrière e Dega começam a emanar uma química disfuncionalmente complementar, servindo-se de um Hunman demasiado bem parecido para ser absolutamente carismático e um Malek aprumado a forçar um sotaque deveras incaracterístico. Mas seja a espezinhar as poças lamacentas de uma selva Maltesa improvisada, ou encarcerado atrás de grades ferrugentas nos confins de Belgrado, Noer oferece-nos uma filmagem documentarista in-your-face, repleta de fervor e adrenalina, que ambos os atores conseguem capitalizar de forma convincente.

Dega só sobrevive com Henry, e Henry só escapa com Dega. É a eterna dialética elementar de “Papillon”, que o argumentista Aaron Guzikowski (Raptadas) não poderia abster-se de realçar…

Numa cadência relativamente pausada, quase slow burner, a sociedade Henry/Dega atinge o pináculo da nossa simpatia, quando é submetida à mais severa das punições, como se a lei de Murphy fosse uma inevitabilidade. Homero já dizia na sua Íliada: “Nós, Homens, somos coisas desprezíveis.”, tal como o déspota e sadista diretor prisional, Barrot (Yorick van Wageningen), qual capataz impetuoso à espera da próxima colheita de gado humano para alimentar os seus tubarões. Yorick, enfurece a trama com a revolta existencial de tudo aquilo que é passível de ser odiado numa pessoa, glorificando ainda mais a causa de Charrière, tal como já o tinha feito Edmond Dantès em o Conde de Monte Cristo de Alexandre Dumas. Porque mais do que se catalogar como uma história de sobrevivência motivada pelos instintos mais básicos do homem, “Papillon” encontra a sua razão e, por conseguinte, a sua salvação, na força dos laços afetivos, ao invés de se reduzir ao facilitismo da máxima darwinista da sobrevivência do mais forte em detrimento do mais fraco. E embora Guzikowski pretenda atingir o alvo da redenção pessoal como fim último da jornada fugitiva, não o faz a qualquer custo, vilipendiando valores morais como a lealdade ou a compaixão.

Papillon
Louis Dega (Rami Malek) e Henri Charrière (Charlie Hunman) na Ilha do Diabo.

“Papillon” de Michael Noer, apesar de se assumir como um remake do clássico de setenta e três, dá-lhe um makeover contemporâneo ao mesmo tempo que introduz nuances suficientes, que o afastam de uma cópia direta e descarada do original. A ética de trabalho de Hunman, que perdeu cerca de quinze quilos e pernoitou uma semana num estabelecimento prisional, e a descontração de Malek que chega ao set e faz acontecer, denotam o esforço e dedicação empregues por um dupla que acaba por ser mais eficaz pelas circunstâncias do que pela pura competência. Queremos com isto dizer que, não obstante o entendimento genericamente plausível, a espaços sente-se aquela formatação do discurso e aparência artificial, como se Hunman tivesse estado a treinar no ginásio para um combate de boxe, e Malek tivesse a fingir ser um prisioneiro em vez de o tentar ser na plenitude. Contudo, tanto um como o outro esfalfam-se no grande ecrã para nos entreter, e conseguem com todas as falhas e omissões. “Papillon”, será porventura, a melhor história real de um fugitivo evadido alguma vez contada, razão pela qual esta segunda interpretação merece, também ela, uma segunda oportunidade de visualização.

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Papillon
Papillon

Movie title: Papillon

Movie description: A épica história baseada em factos verídicos de Henri “Papillon” Charrière (Charlie Hunnam), um arrombador de cofres do submundo parisiense, que é injustamente incriminado por homicídio e condenado a prisão perpétua na colónia penal da Ilha do Diabo. Papillon cria uma improvável aliança com o falsário Louis Dega (Rami Malek), que em troca de proteção concorda em financiar a fuga de Papillon. Juntos irão planear e executar a mais corajosa fuga alguma vez contada.

Date published: 3 de September de 2018

Director(s): Michael Noer

Actor(s): Charlie Hunnam, Rami Malek, Tommy Flanagan, Yorick van Wageningen

Genre: Crime, Drama, Mistério, Thriller

  • Miguel Simão - 85
  • Daniel Rodrigues - 55
70

CONCLUSÃO

“Papillon” é uma sólida rendição baseada nos escritos de Henri Charrière, digna de ser reconhecida e revisionada. Noer aumenta o grau de violência e espalhafato face ao original, propondo-nos uma aventura épica de um calibre não visto muitas vezes numa sala de cinema. “Papillon” é um filme introspetivo, que apesar de nos querer levar a obter um prazer mórbido, no final acaba por recompensar-nos emocionalmente num exercício de contemplação.

O Melhor: O empenho de Hunman e Malek na edificação e evolução das suas personagens ao longo da história; o contraste da paisagem paradisíaca com o degredo metálico do estabelecimento prisional; as dinâmicas da trama e a sua imprevisibilidade; um final surpreendente para quem desconhece a obra.

O Pior: Alguma falta de fluidez nas linhas discursivas; cosmética denuncia alguma artificialidade representativa.

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