"Hallelujah: Leonard Cohen, A Journey, A Song" | © Geller/Goldfine Productions

Porto/Post/Doc ’22 | Hallelujah: Leonard Cohen, A Journey, A Song, em análise

Nada parece mais apropriado que terminar a nossa muito demorada cobertura do nono Porto/Post/Doc com uma análise sobre o título que lhe deu início. “Hallelujah: Leonard Cohen, A Journey, A Song” foi o filme de abertura do festival, espelhando uma abordagem inortodoxa ao retrato do artista. Os realizadores Daniel Geller e Dayna Goldfine estrearam seu mais recente trabalho em Telluride e Veneza no ano passado, tendo percorrido o circuito festivaleiro mundial com o documentário. Chegaram então a Portugal, ao mesmo tempo que a temporada dos prémios de cinema se afigura no horizonte. Recentemente, “Hallelujah” foi nomeado para o Critics’ Choice Award para Melhor Documentário Musical.

O documentário biográfico é um modelo cinematográfico tão ossificado pela convenção quanto o biopic narrativo. Tal é a prevalência da fórmula e do cliché que, de vez em quando, lá encontramos alguns cineastas a trabalhar com o intuito direto de contradizer o lugar-comum e encontrar vias alternativas para a exploração. Ainda este ano, vimos como Brett Morgen explodiu a figura de David Bowie num épico psicadélico, apelando a formas do cinema experimental num gesto algures entre a poesia e o caos total, o sonho e o pesadelo. Tal como o Ziggy Stardust virado Halloween Jack, também essa obra se transfigura em ciclo vicioso.

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© Geller/Goldfine Productions

“Moonage Daydream” representa uma maneira de escapar às manias do subgénero, mas está longe de ser o único exemplo de tais esforços. Prova disso é “Hallelujah: Leonard Cohen, A Journey, A Song,” por onde Daniel Geller e Dayna Goldfine encontram forma de entrar na vida do célebre poeta feito músico sem cair no pecado do perfuntório. Afinal, não há nada mais frustrante do que ver um documentário sobre artista vanguardista, onde o génio central jamais reverbera pela forma da fita. Ou seja, é triste quando se faz filme sobre criatividade e depois seguem-se mecanismos anti-criativos, imaginação morta em 35mm com a cena do crime projetada na tela.

Os cineastas deste novo trabalho sobre Leonard Cohen resolvem a questão através de uma estrutura meio picaresca, seguindo a biografia de uma canção em paralelo à história do seu criador. Trata-se, pois claro, da composição mais famosa de Cohen, aquela que dá nome ao filme. É “Hallelujah,” originária num álbum sem distribuição nos EUA que teve um percurso muito curioso desde a obscuridade até à fama global. Há ecos de Ophüls e Bresson nesta abordagem, vendo como essa famosa melodia e suas letras mutáveis passaram de mão em mão, transformando-se ao longo do caminho. Primeiro, contudo, há que se entender como Cohen concebeu a canção.

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Não que o documentário se afirme logo nesses parâmetros. Tudo começa no fim, no último concerto ao vivo de Leonard Cohen antes da morte em 2016, e daí salta-se para um registo de memória. Ouvimos falar das origens do artista, seu background de classe alta, identidade judaica e início profissional enquanto poeta no Canadá. Filmagens de arquivo dão-nos contexto, com algumas entrevistas contemporâneas a tombarem o projeto na direção do cliché. Só que há um tenor emocional nos testemunhos, um interesse em catalogar os amores e processos de Cohen mais do que a aventura profissional ou o progresso da sua persona enquanto celebridade.

Chegados aos sete anos que Leonard Cohen passou a tentar escrever “Hallelujah,” somos levados a entender o trabalho enquanto confissão, uma meditação sobre espiritualidades e desejos pecaminosos, tudo apreciado através de um prisma filosófico. A canção vai ganhando poder totémico dentro do edifício fílmico, mas há complexidade no retrato feito. Muito se discute a tentativa de divorciar o termo da conotação estritamente religiosa e, mais tarde, discutem-se as variações técnicas da sonoplastia no álbum. Essa segunda questão serve de introdução a uma das grandes tristezas na vida de Cohen.

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© Geller/Goldfine Productions

Aconteceu em 1984, quando a editora americana se recusou a vender o álbum já gravado, enterrando essa majestosa canção antes que o mundo tivesse oportunidade de a conhecer. É nesse ponto que o documentário diverge mais fortemente do modelo tradicional, partindo numa viagem muito comprida que começa com Bob Dylan e acaba no “American Idol,” passando por “Shrek” e muitos funerais. Ao longo dos anos, várias covers são feitas, várias mudanças também. Cohen é o primeiro a adaptar a letra, trocando versos com base nesse trabalho de sete anos. A certa altura, mencionam que deverá haver aí 180 versões diferentes da canção entre os blocos de notas do escritor.

Mais ainda serão as variações engendradas por outros artistas, desde músicos a cineastas. Tanto se ouve a mesma canção que começamos a apercebermo-nos da sua maleabilidade, do modo como algo tão singelo como a idade de quem canta poder alterar o seu significado. A maleabilidade da obra é estonteante, mas um ponto permanece inalterável – o seu poder para o ouvinte. Ao seguir a vida de uma só canção, “Hallelujah” torna-se num testamento ao legado do artista, fugindo a hagiografia direta ao mesmo tempo que torna evidente quanto a sua arte reverberou pela alma de tanta gente. Nem tudo funciona na perfeição, mas o trabalho vai melhorando no seu desenrolar, até chegar a um final comovente, grande homenagem a esse mestre que foi Leonard Cohen.

Hallelujah: Leonard Cohen, A Journey, A Song, em análise
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Movie title: Hallelujah: Leonard Cohen, A Journey, A Song

Date published: 9 de December de 2022

Director(s): Daniel Geller, Dayna Goldfine

Genre: Documentário, Biografia, Música, 2021, 118 min

  • Cláudio Alves - 72
72

CONCLUSÃO:

Sem desvendar nenhum mistério ou revelar grande segredo, “Hallelujah: Leonard Cohen, A Journey, A Song” é uma interessante variação no modelo do documentário biográfico. De facto, permite que alguns mistérios continuem misteriosos, nunca realmente explicando por inteiro o processo de Cohen. No fim do dia, este documentário é visionamento obrigatório para fãs do artista, mas, verdade seja dita, é mais a biografia de uma canção do que de uma pessoa. Dizemos isso com grande amor no coração, há que se entender.

O MELHOR: A estrutura à la “O Dinheiro” de Bresson ou os brincos da “Madamd De…” que Ophüls em tempos assinou. Trata-se de uma soberba maneira de contrariar o cliché e descobrir novas formas de entender e representar o artista numa cinebiografia além dos limites da dramatização.

O PIOR: As entrevistas são todas filmadas de forma corriqueira. Por muito que a premissa do documentário fascine, seu primor formalista deixa algo a desejar. Onde está a imaginação visual para se juntar às maravilhas sónicas e narrativas?

CA

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