"A House Made of Splinters" | © Final Cut for Real

Porto/Post/Doc ’22 | A House Made of Splinters, em análise

No Porto/Post/Doc, um júri composto por estudantes portuenses do ensino secundário escolheu “A House Made of Splinters” como vencedor do seu Prémio Teenage. Nas suas próprias palavras, a seleção justifica-se “Pela forma muito especial com que o realizador se integra na vida quotidiana de um orfanato, e a sua dedicação a dar-nos uma visão sobre duas realidades diferentes, transmitindo uma intimidade de forma tão nua e crua; e pela possibilidade de nos facultar uma perspetiva interior, profunda e pessoal na vida destas crianças.” A obra teve a sua estreia mundial no Festival de Sundance em Janeiro passado, onde ganhou um galardão pela sua realização. Agora, também se encontra nomeado para os Film Independent Spirit Awards, na categoria de Melhor Documentário.

O abrigo de Lysychansk na Ucrânia deveria ser um espaço temporário, lugar de transição para crianças em busca de novo lar. Contudo, para muitos dos seus habitantes, a efemeridade não é assim tão efémera, tornando-se uma casa de regresso cíclico. Presos neste limbo liminar, sua estadia não pode ultrapassar os nove meses, mas isso não os impede de voltar uma e outra vez, à medida que são rejeitados por novas famílias ou outros familiares de sangue sem paciência, sem posses, ou sem esperança. Assim é desde 2014, quando os conflitos rebentaram na nação e as forças russas tornaram suas fronteiras a Leste em zona de guerra.

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O realizador Simon Lereng Wilmont não se interessa lá muito pelo contexto exterior, não afigurando a sua obra enquanto crónica histórica ou um perfil jornalístico sobre o estado atual da Ucrânia. Não, seu foco incide no dia-a-dia das crianças de Lysychansk, retratando a guerra através dos seus efeitos. Nesse sentido, assemelha-se um pouco ao “Notturno” de Gianfranco Rosi. Em ambos os casos, a violência existe fora do ecrã, mas sua força faz-se sentir, reverberando por todo o edifício fílmico e suas histórias de vidas quebradas. Vemos os estilhaços, mas não o martelo que espicaçou o vidro. Testemunhamos as ondas concêntricas na água, formando anéis em torno do ponto onde caiu uma pedra. Contudo, a pedra é só sugerida, nunca exposta.

Também os contos de miséria alheia nem sempre refletem o impacto direto do conflito, sendo marcados, ao invés, pelo toque oblíquo do cataclisma bélico. Na angústia de um inferno terreno, há quem caia no alcoolismo e outros vícios, perdendo a capacidade de cuidar dos filhos. Numerosas são essas realidades e, como a narração em voz-off nos informa, a cada dez portas, pode-se descobrir mais um triste reflexo de famílias desfeitas. A câmara assim percorre os corredores do abrigo feito orfanato. É “A House Made of Splinters,” uma casa feita de farpas, como o título indica, sempre pronta a nos magoar e derramar sangue, quiçá lágrimas.

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Assim vai o nosso olho divino perscrutando aquilo que se esconde atrás de cada porta, aproximando-se dos meninos esquecidos e neles desvendando coisas que hão até de fazer chorar as pedras da calçada. Dito isso, existe disciplina na observação. É esse rigor que impede o filme de se tornar pornográfico na sua documentação do sofrimento infantil. Há também uma grande dose de empatia e humanismo a marcar cada fotograma, fazendo o retrato multidimensional de variadas figuras, concedendo dignidade àqueles que se tornam estatísticas anonimizadas quando discutidos nos noticiários pelo mundo fora.

Às margens da gente pequena, um verdadeiro batalhão de agentes sociais tenta remediar as trajetórias tristes das crianças nesta Ucrânia do terrível presente. Formam-se laços de ternura fortes, mesmo quando os mais novos são incapazes de reconhecer a gentileza alheia, tão sôfrega tem sido a sua existência. Gradualmente, à medida que o tempo passa, vamo-nos familiarizando com alguns rostos e esse processo afetivo começa a infiltrar-se no coração do próprio espetador. Acontece isso em termos paradoxais de amor e horror, sendo que, com a intimidade, vem o conhecimento, o entendimento crescente dos fados e factos.

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Essa clarividência não ocorre sem dor, muitas vezes englobando uma alienação progressiva por parte de jovens forçados a crescer antes do tempo. Metaforicamente, testemunhamos barreiras impondo-se entre suas almas vulneráveis e o mundo cruel, quais cicatrizes amontoadas em jeito palimpséstico. Também com o tempo se evidenciam alguns miúdos com protagonismo, figuras centrais que servem de âncora para todo o projeto, dando estrutura a um documentário cujos episódios tendem a parecer dispersos ao ponto da desconexão. São eles Alina, Eva, Sasha e Kolya, grandes heróis cinematográficos, complexos e até divertidos, capazes de sustentar um tenor melancólico onde a esperança lá se aguenta ténue como uma vela acesa perante o vento.

Em termos formais, a centralização deste quarteto tem grandes benefícios que vão além da mera estrutura. Tanto é o tempo passado com os meninos que percebemos haver uma cumplicidade em desenvolvimento deles para com a câmara, possibilitando imagens de surpreendente sofisticação. Apesar de “A House Made of Splinters” se contextualizar dentro dos paradigmas do cinema vérité, há beleza nas suas composições e mais memoráveis imagens. O uso de tonalidades calorosas é especialmente marcante, como que procurando dispor um conforto impercetível sobre a paisagem fria e seus corpos gelados. Faz-se o refinamento do cinema sem cair na nostalgia indevida. Só a banda-sonora peca pelo sentimentalismo em demasia, mas a franqueza geral da obra contrabalança a fragilidade. Qualquer defeito aparente, nada pode negar a urgência deste documentário ou a importância da sua mensagem, uma missão de sensibilização e um apelo à compaixão.

A House Made of Splinters, em análise
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Movie title: A House Made of Splinters

Date published: 7 de December de 2022

Director(s): Simon Lereng Wilmont

Genre: Documentário, 2022, 87 min

  • Cláudio Alves - 80
80

CONCLUSÃO:

Simon Lereng Wilmont detalha uma crónica de vidas traumatizadas pela guerra na Ucrânia, pesquisando o custo humano do conflito na sinédoque social de um abrigo infantil na vertigem do orfanato. “A House Made of Splinters” é daqueles filmes que magoa ver, mas vale a pena experienciar suas histórias punitivas para o espetador. Até nestes recantos mais sombrios da miséria humana se encontram raios de esperança, quais flores a crescer por entre as rachas do alcatrão.

O MELHOR: A franqueza do dispositivo cinematográfico, sua contenção e empatia para com as várias vidas que passam diante da câmara.

O PIOR: A banda-sonora e seus devaneios mais lamechas, um doirar da pílula que fica mal neste documentário severo e disciplinado.

CA

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