Porto/Post/Doc ’22 | A Little Love Package, em análise

Nesta mais recente edição do Porto/Post/Doc, o júri formado por Alexandra Dias Fortes, Gerwin Tamsma e João Lopes deu o prémio da competição internacional ao filme “A Little Love Package” de Gastón Solnicki. Esta coprodução austro-argentina estreou originalmente na Berlinale, onde integrou a secção Encounters. Viajando pelos festivais de cinema por todo o mundo, esta modesta joia vai ganhando fama apesar do seu registo à beira do experimental. Trata-se de um poema visual que, estando num programa putativamente dedicado ao documentário, levanta questões sobre categorias fílmicas, seus limites e potencial obsolescência.

A sinfonia sobre a cidade é um tipo de filme que existe há muito, tendo tido sua máxima popularidade durante o crepúsculo do mudo e a alvorada do sonoro. Muito do cinema documentário e experimental encontra a sua génese nessas obras como Manhatta de 1921 ou a poesia berlinense de Walter Ruttmann. No limiar do avant-garde, esses filmes apelavam à expressão lírica sobre um mundo em vertigem de modernidade, recorrendo a mecanismos por onde a narrativa era repudiada e se depurava o cinema até chegar à essência. A câmara e a montagem definem estas expressões e, apesar da moda ter passado, a tradição perdura até aos nossos dias.

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© Little Magnet Films

Em certa medida, Gastón Solnicki tem feito carreira numa vertente que muito deve às sinfonias do passado. Seu mais conhecido trabalho até hoje foi certamente “Kékszakállú” onde se explora o potencial lírico da montagem ao som de ópera. Nessa obra, já muito o cinema deste autor se aproximava da sinfonia da cidade em termos de técnica subjacente. Contudo, faltava-lhe o centro urbano como objeto de estudo. Isso muda em “A Little Love Package,” onde Viena se afigura como suprassumo protagonista da obra enquanto Málaga serve de atriz secundária e ponto de contraste num jogo de improvisações. O período temporal também é específico, coincidindo com a passagem de nova lei em 2019.

Acontece o filme quando se proibiu o ato de fumar dentro de cafés, uma promulgação que veio fazer cair uma cultura de kaffehaus com séculos de idade. Ou, pelo menos, assim são as lamentações mais dramáticas, equiparando o novo status quo a um apocalipse vienense. Não que “A Little Love Package” se deixe levar pelo melodrama da gente apavorada ou se restrinja a uma singular perspetiva sobre o assunto. Longe de ser tratado político, este é um objeto de cinema poético com travos de humor, laivos sardónicos e a melancolia de um coração vazio. Há franqueza na apresentação e compaixão para com aqueles que fazem luto a um modo de vida perdido, mas a grandiosidade da miséria é sempre subvertida.

No fim dos dias, este é um filme pequeno que mais pequenino se faz pelo foco em detalhes mundanos, construindo uma homenagem à cidade através de fragmentos colados uns sobre os outros numa espécie de palimpsesto editorial. Às vezes deparamo-nos com as cadeiras vazias de um café. Noutras ocasiões a câmara faz um autêntico postal de solidão urbana através do enquadramento singelo de um Ferrari. Há também a beleza estranha de um ovo cozido, sua dilaceração e uma parada sem fim de apartamentos rejeitados. Sim, há que falar desses espaços domésticos transformados em realidades liminares pelo julgamento de uma cliente cheia de exigências.

Ela é Angeliki, mulher em busca de nova casa com o auxílio de Carmen, sua amiga designer de interiores. Sua procura sem fim dá ao filme um semblante de forma, estrutura meio esbatida que é quase como uma âncora a travar uma câmara com vontade de se perder nos mais inusitados devaneios. A procissão de espaços, sua crítica cruel, sua dissecação bruta, leva a um novo considerar da ordem urbana onde todo o valor de um lugar se resume à nostalgia nele imbuído. Cada sítio é feito de memórias e impressões fugazes, fantasmas de toques passageiros e convívios esquecidos. Estas ideias são examinadas de modo divertido, de vez em quando. Noutras ocasiões, esbarra o filme com a portentosa referência à Última Ceia de Cristo.

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© Little Magnet Films

Ai que confusão, que mixórdia de conceitos e abordagens rimadas, coisas sem aparente sentido que, no entanto, fazem sentido emocional para quem se deixar levar por “A Little Love Package.” Este é um daqueles filmes que contradizem a vontade de decifração, virando as costas ao espetador em busca de explicações ou puzzles resolvidos. Na verdade, é uma vertente pura de cinema onde planos se encontram no corte e, da sua comunhão, nasce um novo significado, por muito inefável que possa ser. É o arrojado assombro que vem de pormenores sem importância elevados a iconografias épicas – um caderno forrado a lantejoulas cujo toque se pode quase sentir através da imagem, ou a atmosfera abafada dos cafés onde ainda se fuma à revelia da lei.

Por outras palavras, se querem sentir a verdadeira maravilha que Solnicki engendrou, há que deixar a razão à porta do cinema e render-se ao que é belo por si só, desconexo da leitura intelectualista ou da convenção textual. Chamar-lhe-ão pretensioso, mas não há aqui pretensões de grandeza ou importância. Este é um trabalho contente em ser pequeno e confuso, íntimo e poético como um verso a ecoar pelas ruas vazias de uma capital europeia. Venham conhecer a Viena sonhada pelo realizador, terra sonâmbula onde o por-do-sol é o nascer, onde o passado e o presente vivem juntos na paisagem urbana, seus objetos perdidos e memórias relembradas.

A Little Love Package, em análise
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Movie title: A Little Love Package

Date published: 4 de December de 2022

Director(s): Gastón Solnicki

Actor(s): Angeliki Papoulis, Carmen Chaplin, Mario Bellatin

Genre: Drama, 2022, 81 min

  • Cláudio Alves - 80
80

CONCLUSÃO:

Um bizarro poema cinematográfico que serve como sinfonia da cidade, preso entre a modernidade e o amor pelo antigo, “A Little Love Package” é mais um trabalho inspirador de Gastón Solnicki. Entre o realizador, Rui Poças na fotografia e Alan Segal na montagem, este é um objeto lírico sobre a beleza contida em espaços e objetos, os espectros que os assombram em forma de memórias gravadas sobre um mundo físico. Nem tudo é perfeito, mas este postal abstrato serve para inebriar o cinéfilo pronto a render-se aos seus estranhos prazeres.

O MELHOR: Um desvio pela História da indústria queijeira, suas tradições ancestrais e espaços específicos onde enormes rodelas envelhecem para ganhar sabor e antiguidade. Solnicki é como Vitor Hugo que, a meio de “Os Miseráveis,” passa páginas sem fim a discutir desenho urbanístico ou os afazeres de um convento. Não que “A Little Love Package” tenha ares de literatura – este é um trabalho que só poderia existir em forma plena no cinema.

O PIOR: O uso do voz-off e da narração nonsense parece-nos um apontamento a mais que detrai daquele inefável lirismo puramente audiovisual. Se é para seguir a via abstrata, que sejamos abstratos. O dadaísmo da intenção é louvável, mas o resultado final destes mecanismos tende para o pueril. Em suma, quaisquer interveniências em estilo de narração são distrações excisáveis.

CA

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