"O Acidente" | © Vulcana Cinema

Queer Lisboa ’23 | O Acidente, a Crítica

Na sua primeira longa-metragem, o realizador brasileiro Bruno Carboni considera um estranho acidente automobilístico e suas repercussões. “O Acidente,” que já passou por muitos festivais no mundo inteiro, chega agora ao 27º Queer Lisboa, onde integra a Competição de Longas-Metragens narrativas.

Tudo começa num crepúsculo como outro qualquer, a noite precipitando-se sobre a cidade de Porto Alegre no Rio Grande do Sul. Enquanto uma melodia de sopro se faz ouvir na banda-sonora, a câmara contempla a estrada pintada com a luz de carros sem fim. Pelo meio dos automóveis, uma ciclista faz o seu caminho. Ela é Joana, uma tradutora que se apressa para chegar a horas ao trabalho de intérprete. O stress só aumenta quando, do nada, surge um carro que a ultrapassa e, no processo, quase a derruba. Tomando proveito do engarrafamento, ela lá tenta confrontar o condutor, uma mãe na companhia do filho. Só que esta ignora-a e fecha-lhe a janela na cara.

Joana põe-se à frente da viatura para chamar a atenção à outra mulher, mas nada resulta disso – só silêncio. E então o mais bizarro sucede, a condutora levando o carro para a frente até colher a ciclista no capô, arrastando-lhe a bicicleta entre os pneus. A aflição é óbvia na face de Joana, especialmente quando o carro não para apesar das súplicas. Impávida, a senhora atrás do volante nem reage, mas o filho filma o episódio com o telemóvel. Por fim, finca o pé o no travão e lá vai Joana pelos ares, acabando no chão por cima dos restos da bicicleta. O carro prossegue seu caminho, como se nada tivesse sucedido.

o acidente critica queer lisboa
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Esta é a abertura de “O Acidente” de Bruno Carboni, mas também descreve o vídeo que o cineasta encontrou na net e em que se inspirou para rodar a fita. Contudo, o seu trabalho não incide tanto na viralização enquanto flagelo ou algo semelhante. Ao invés, considera-se uma sociedade rancorosa, cheia de silêncios pesados e pressões constantes, pequenos nervosismos que se vão acumulando e corroendo o espírito, rancor inflamado e flamejante. O silêncio certamente caracteriza a reação da atropelada que, a seguir ao acidente, segue sem dizer nada a ninguém. Só o sangue que lhe escorre do nariz e os hematomas escassos denunciam o que aconteceu.




Isso e a postagem do vídeo online. É assim que Cecília, sua companheira, descobre e entra em pânico, temendo pela saúde de Joana e do feto que ela carrega no ventre, estando as duas no processo de ter o primeiro filho. Qual avalanche, o acidente é uma bola de neve que cresce à medida que desce a montanha. A polícia leva-as até ao dono do carro que está a meio do divórcio, sendo a sua esposa quem estava no lugar do condutor essa noite. Dele vem um pedido curioso. O pai furioso quer o testemunho de Joana no julgamento pela custódia do menino. Por seu lado, a condutora vem confrontar a sua suposta vítima. Em suma, é uma grande complicação.

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No entanto, por entre a família que se insinua no seu dia-a-dia, Joana é mais cativada pelo pequeno Maicon, a quem o pai quer enfiar num colégio militar. O patriarca fará isso numa tentativa de normalizar o filho estranho, mas é essa estranheza que desperta o interesse da ciclista. Isso e os vídeos na conta do Youtube, reveladores de um olho apurado para as poesias do quotidiano, coisas mundanas retratadas com a curiosidade de alguém com potencial artístico. Justapõem-se essas facetas com seu temperamento saturnino, tão calado quanto Joana, e a protagonista não tem como se distanciar do drama familiar. Ela quer o melhor para Maicon.

A atitude aparece num surgimento meio maternal, mas não há conclusões definitivas no cinema de Carboni ou na caracterização que a atriz Carol Martins interpreta. A desconexão com Cecília parece apontar para tensões por verbalizar entre o casal, enquanto os comportamentos da grávida tanto tombam para a ansiedade de quem quer ser mãe como seu exato oposto.  E depois tudo se altera perante uma risada surpresa e uma dança sob a luz da trovoada, uma revelação trágica, um pesadelo que desolaria qualquer um. O maior mistério deste “Acidente” não é o evento na origem do caos, mas as respostas de Joana às provações da vida.




o acidente critica queer lisboa
© Vulcana Cinema

Assim se afigura a fita um estudo de personagem recatado, cheio de ambiguidades morais e opacidade emocional. Nem sempre isso resulta em benefício da obra, e, chegado o fim, parece-nos que um tom menos catatónico teria ajudado à exploração psicológica dos sujeitos. O drama é meio inerte de propósito, mas nem tudo o que resulta intelectualmente para o artista vai vingar na experiência do espetador. Quere-se mais do que aquilo que já está em cena, uma apuração dos sentidos e das ideias. Quiçá, quere-se uma força maior que levante o sussurro para grito, mesmo que só por segundos. Talvez, algo que aprofunde o pensamento além da superfície.

Louvado o repúdio do melodrama e aceites as fragilidades do texto, a forma de “O Acidente” peca pela comparação com o cinema dentro de si mesmo. É que, excetuando o trabalho de som – tanto o design dos ruídos como as composições musicais de Maria Beraldo – o filme fica aquém das experiências estéticas com que Maicon se entretém. No registo interpretativo, Martins faz o que pode. Dito isso, quem mais se destaca é a família desfeita na órbita de Sara, tanto os graúdos como os mais miúdos. Palmas para o desconforto permanente de Marcello Crashaw e Gabriela Greco (“Tinta Bruta“) como pais em separação, e para o jovem Luis Felipe Xavier no seu primeiro papel em cinema.

O Acidente, em análise
o acidente critica queer lisboa

Movie title: O Acidente

Date published: 25 de September de 2023

Director(s): Bruno Carboni

Actor(s): Carol Martins, Luis Felipe Xavier, Gabriela Greco, Marcello Crawshaw, Carina Sehn

Genre: Drama, 2022, 95 min.

  • Cláudio Alves - 65
65

CONCLUSÃO:

Como ópera só cantada em sotto voce, “O Acidente” de Bruno Carboni aborda sentimentos fortes, trauma e dor, mas jamais sobe o tom. Faz-se o melodrama em surdina sem realmente cair no melo, com a quietude geral merecedora de tanto respeito quanto frustração. O estudo de personagem não deixa de ser curioso, contudo, mesmo com as fragilidades anotadas. A protagonista, Joana, é um mistério do princípio ao fim e há valor na recusa da sua decifração.

O MELHOR: A banda-sonora, uma maravilha de clarinetes serpentinos, muito melancólicos.

O PIOR: Tanto “O Acidente” foge à abordagem óbvia que vai perdendo alguma da intensidade, emocional e psicológica, que podia ter. Sentimos que muito mais poderia ter sido feito com o conceito, talvez até as mesmas personagens. A cena final de diálogo entre duas possíveis mães confirma isso – muito graças ao trabalho colérico de Gabriela Greco. É pena a fita terminar no instante em que a história parece pronta para começar.

CA

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