"Out of Uganda" | © Outplay Films

Queer Lisboa ’23 | Out of Uganda, a Crítica

Out of Uganda” examina a questão da homofobia nessa nação africana, seguindo jovens que tentam formar nova vida noutro país, em asilo. Realizado pela dupla suíça de Rolando Colla e Josef Burri, o filme integra a Competição de Documentários na 27ª edição do Queer Lisboa.

Tambores ribombam na banda-sonora quando o ecrã está escuro e só os créditos iluminam a sombra. Contudo, assim que a imagem se manifesta, a música cessa. Afinal, não estamos no mundo a que pertencem esses tambores – ou talvez essa suposição seja um erro. Em todo o caso, a câmara deposita-nos na Suíça, onde jovens Ugandeses procuram asilo. São eles Philip, Hussein, Remy e Shammy, unidos pela sexualidade fora dos limites da heteronormatividade e assim condenados à rejeição na sua nação-mãe. Só que a saudade perdura, Uganda vivendo na memória que o filme concretiza na música e montagem, puxando pela lágrima do espetador e por um cinema de sensibilização política.

A seu tempo, a observação pacata deste limbo alpino dará lugar a imagens em África, com a câmara a perscrutar lugares que os refugiados podem apenas pisar no sonho, na lembrança. Mesmo assim, as faces de familiares e amigos, até de antigos namorados, aparecem desfocados. São máscaras de anonimato digital impostas por gente que não quer ser associada com assunto tabu. Até nesta linguagem visual, “Out of Uganda” demarca as separações entre a juventude queer e todo um país que os rejeitou. Como nos lembra Remy, mulher lésbica em fuga de perseguição, ela não abandonou sua casa por escolha própria. Como todos estes testemunhos, foi forçada.

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© Outplay Films

Quem não tem medo de mostrar a cara são aqueles que executam os ditames do preconceito, anciãos sorridentes que exibem crachás homofóbicos ao peito. Orgulhosamente, eles mostram para a câmara slogans sobre expulsar a sodomia do Uganda, pontapear a gente devassa como bola de futebol para fora das fronteiras. A ligeireza do discurso é o que mais espanta e transtorna. A crueldade foi normalizada a tal ponto que é coisa banal, conversa que se tem casualmente sem fazer grande furor. É só mais um dever do cidadão, mais um afazer do dia-a-dia. Para quem a sente na pele, contudo, é um pesadelo que perdura muito depois do ato em si.

Shammy, mulher trans assumida, foi atacada e despida em praça pública, relatando a sua chegada a casa num pranto e como seu pai a denegriu ainda mais. Chamou-lhe Satanás, expulsou-a. No desamparo, ela considerou o suicídio, mas a providência salvou-a. Uma vontade, quiçá de um espírito, tê-la-á levado a resistir e não se conformar ao abismo. Ela persevera, sobrevive, vendendo o corpo para se sustentar, mas não desiste. A confissão é feita em voz-off, com imagens da fugitiva junto a um corpo de água que pode ser Uganda ou Suíça, qual terra de ninguém que a câmara propositadamente descontextualiza para permitir múltiplas possibilidades. Em ocasiões diferentes, será impossível ignorar em que continente estamos, especialmente quando se dá uso a filtros coloridos clichés.




Nessa variável incógnita geográfica, trespassa a situação única da gente a quem a pátria foi negada pelo ódio. “Out of Uganda” baseia-se muito nestes testemunhos entrecortados, uma tapeçaria de almas perdidas em busca do seu lugar no mundo. Talvez por isso, a especificidade do sistema se mantenha meio abstrata, informação subjacente às palavras dos sobreviventes e de quem os rejeita. São formadas acusações concretas contra o jornalismo ‘junk’ que permite denúncias públicas e uma promoção da caçada, mas outras vertentes do horror ficam por apontar. Um filme não pode fazer tudo, especialmente quando só tem 65 minutos, mas deveria tentar fazer mais.

Há imagens de igreja, por exemplo, só que os cineastas jamais perscrutam as origens de muitas medidas em colonialismos religiosos, o Cristianismo trazido de fora para corromper a nação. Pelo missionário chegaram muitos vícios do dito mundo desenvolvido, incluindo um ataque codificado contra todos aqueles que fogem à norma hegemónica. Os realizadores tentam, no entanto, dar voz a um padre corajoso o suficiente para desafiar o status quo e assim mostrar que nem todos são vis, nem todos se deixam levar pela ideia de Deus enquanto máximo castigador. Também Ele pode ser um Deus do Amor.

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© Outplay Films

Comparando “Out of Uganda” com outros documentários sobre o mesmo tema, sente-se falta de alguma profundeza, de uma mais sistemática dissecação dos mecanismos de ódio e o modo como se infiltra no coração da sociedade, no seio do governo e suas legislações. Pensemos no brilhante “Call Me Kuchu,” por exemplo, onde os argumentos são mais afiados e concretos. Enfim, talvez estejamos a cair naquele erro comum do crítico, avaliando o filme que podia ter sido ao invés daquele que é. “Out of Uganda” quer alertar, mas não se restringe à funcionalidade educativa e não devemos julgá-lo como tal.

De facto, na idiossincrasia da proposta, revela-se um grande retrato de solidão. Trata-se daquela sensação que desperta no âmago daqueles a quem o conforto de uma casa está fora do alcance. Sentimos isso nos ossos, cinema visceral em transmissão de melancolia. Acima disso, sente-se o dilema do refugiado, escapado aos ódios de um sítio para encontrar novos preconceitos contra si na forma de racismo e xenofobia. Nem é preciso pensar no ataque direto – basta refletir na indignidade da sua espera, impedidos de estabelecer raízes, habitação e emprego, enquanto grandes autoridades decidem se o seu sofrimento é válido ou não, se o seu pedido de ajuda merece resposta.

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Para o espetador, chega-se a um ponto em que a cara do burocrata apático suíço é tão odiosa como a do assassino homofóbico e transfóbico da Uganda. Assim somos levados ao epíteto da indignação, com um grito de fúria a fazer cócegas na garganta, desejoso de se fazer ouvir. Ainda há esperança, personificada pela comunidade queer e ativista, advogados solidários e aqueles que, sob acusações de tráfico humano, traçam caminhos de salvação para quem é mais perseguido. O contraste radical para com celebrações do Orgulho em Zurique é uma promessa de paz menos bem conseguida, dando aso a contrastes civilizacionais a tombar para o preconceito atrás da câmara.

Talvez isso se deva ao facto de que esta história de Ugandeses ser contada pela mão de artistas suíços – Rolando Colla e Josef Burri. Sem querer desvalorizar os seus esforços, há que refletir sobre que forma este documento teria se a comunidade explorada fosse ela mesma a contar a sua história.




Out of Uganda, em análise
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Movie title: Out of Uganda

Date published: 28 de September de 2023

Director(s): Rolando Colla, Josef Burri

Genre: Drama, 2023, 65 min.

  • Cláudio Alves - 60
60

CONCLUSÃO:

Poderoso, mas cheio de limitações estéticas e políticas, “Out of Uganda” é um documentário importante sobre a situação da comunidade queer na nação africana. Acima disso, contudo, é um testemunho do refugiado LGBT+ que tenta fazer a viagem de África para a Europa. Enquanto produção Suíça, sentimos que o documentário devia ter ido mais longe. Dito isso, há que valorizar o filme à nossa frente e não ficar perdido em conjeturas e comparações feias.

O MELHOR: A inefável melancolia do refugiado Ugandês, a resiliência de quem sobrevive perante ódio mortífero, e a beleza fria nas imagens dos Alpes.

O PIOR: O filme é demasiado curto para o tema proposto. Há muito contexto político que ajudaria a aprofundar as vertentes europeias e africanas desta história, esta experiência do refugiado LGBT+ no mundo contemporâneo. Além disso, quere-se passar mais tempo com os ‘protagonistas,’ conhecê-los melhor enquanto pessoas e não só como figuras definidas pelo seu sofrimento. Isso e o uso de filtros amarelos para diferenciar África da Europa – já chega desse cliché fotográfico, não?

CA

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