"Regra 34" | © Esquina Filmes

Queer Lisboa ’23 | Regra 34, a Crítica

“Regra 34” de Julia Murat é um dos títulos mais prestigiados em competição no 27º Queer Lisboa. Antes de chegar aos cinemas portugueses, a obra brasileira teve a sua estreia mundial no Festival de Locarno, onde arrecadou a honra máxima da festa – o Leopardo de Ouro. Outros prémios se seguiram na travessia do filme pelo mundo, mas será que volta a ganhar aqui, nesta renhida Competição de Longas-Metragens?

A legitimidade do trabalho do sexo tem sido um dos temas recorrentes nesta 27ª edição do Queer Lisboa, chegando ao seu apogeu argumentativo com “Regra 34.” Parte dessa qualidade parte do caráter incomum da fita que se divide entre as explorações eróticas de uma cam girl e sua vida diurna, em que se dedica aos estudos de direito com intenções de se tornar defensora pública. Ela é Simone, uma personagem feita de contradições intersectadas que, chegado o fim da fita, fica por resolver ou reconciliar. Afinal, ela não é um puzzle, mas sim um prisma pelo qual a realizadora Júlia Murat as suas temáticas e arrojados conceitos.

Conhecemo-la em contexto explícito, quando Simone se exibe perante o portátil e projeta a sua imagem desnuda para os muitos olhos que a veem, lascivos e tumescentes com desejo. Quem tiver visto o “Bad Luck Banging or Loony Porn” de Radu Jude poderá ter flashbacks para outra obra que ousa começar nestes modos explícitos, um erótico sem simulação ou pudor. Seria difícil simular a masturbação vista em cena, meso que o registo low-fi da câmara de computador deturpe a realidade com pixelização, ruído, rutura digital. Quase ficamos na expetativa do orgasmo, uma continuação desta provocação para zonas ainda mais libertinas.

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Mas aí, Murat puxa-nos o tapete debaixo dos pés, atirando o espetador, aos trambolhões, para o contexto jurídico em que Simone e seus colegas discutem o sistema penal brasileiro e, a seu tempo, a própria ideia de justiça. Assim “Regra 34” oscila, entre as duas facetas de Simone sem, no entanto, engendrar qualquer tipo de suspense em relação à vida dupla. Este não é nenhum thriller ou qualquer comédia de enganos. O filme trabalha sobre o corpo, mas é principalmente cerebral. E em alguns momentos, até ocorre a justaposição dos seus dois mundos sem, no entanto, se precipitar o projeto para o cliché melodramático.

Pensamos no debate com a turma toda, quando Simone se vê no meio de uma retórica que diz defender a prostituta, mas ataca o trabalho do sexo. A dificuldade de alguns, incluindo feministas ativistas, em respeitar essa profissão é posta à prova, mesmo sem que Simone alguma vez revele aquilo que faz no seu quarto. Faz-se a analogia de classes e questiona-se por que razão a exploração do corpo enquanto objeto erótico é visto como um sinal de desespero enquanto algo como trabalho doméstico não é. Neste sentido, Murat usa a figura de Simone para uma confrontação entre personagens e com a audiência também, testando os limites da retórica liberal.

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Mais interessante e certamente menos verboso é o modo como alianças de etnia e sexualidade se formam entre o corpo estudantil, fações cuja lealdade consegue extravasar o círculo de advogados e entrar em intimidades pessoais. Uma noite, dois colegas seguem Simone até casa e temos direito a uma ménage à trois, inflamada de desejo e a ligeireza de uma brincadeira atrevida. Um dos parceiros sexuais de Simone até a segue por outras desventuras no boudoir, aparecendo em câmara para o livestream e experimentando BDSM com ela. De facto, dessas explorações do kink vem muita da estrutura da fita e o arco narrativo de Simone.

Com uma outra colega do cam – não da advocacia – ela vai discutindo como sentir e descobrir os horizontes do seu prazer, com asfixia autoerótica, facas e cigarros acesos na pele. Um grande lema define os seus atos – putaria não, é sexo artístico. É na conversa com essa companheira dos reinos virtuais que Simone também procura consolo quando a odisseia BDSM lhe corre mal, quando se transgride algo para o qual nem espírito nem corpo estavam preparados. Mas talvez a dor seja o objetivo, algum castigo para punir aquilo que Simone vê de errado na sua pessoa. Ao invés de prazer, será que ela buca justiça autorreflexiva?

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Se o jurídico se infiltrou no sexual, então as emoções do privado também se vão abater sobre o trabalho legal. Como no transe, “Regra 34” é um jogo de forças e impulsos, trocas e exultações, com complicações à mistura. Neste evento, será um caso de violência doméstica que ainda não passou do verbal ao físico. Até que o faz e Simone é posta à prova perante o juiz, argumentando sobre esse dito homem de bem que de bem não tem nada. Ela pede misericórdia para com o marido violento, propondo uma visão radical em que se deve incidir a crítica no sistema e ser menos punitivo para com o indivíduo.

Contextualiza-se a má ação, o crime imperdoável, como algo que devém de um condicionamento social pela sociedade preconceituosa e cheia de ódio. Não é fácil julgar esta abordagem em parte porque “Regra 34” se mantém ambivalente em relação à sua protagonista. Daí vem valor, pois deixa o espetador na posição de júri, força-o a tirar as suas próprias conclusões com base nos vários argumentos propostos. Faz-se cinema em jeito de diálogo ou, nesta conjetura de advogados, em jeito de tribunal. Essa mesma natureza aberta segue Simone até um final de cortar a respiração, quando o didatismo do discurso explode em máximo risco e Simone se confronta com o oblívio.

Será que ela vai escapar ilesa? Será este outro jogo? Será que ela sabe o que está a fazer ou, como todos nós, caminha cega pela vida de mãos estendidas para apalpar o caminho certo? Não sabemos. A resposta depende de cada espetador.




Regra 34, em análise
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Movie title: Regra 34

Date published: 28 de September de 2023

Director(s): Júlia Murat

Actor(s): Sol Miranda, Lucas Andrade, Lorena Comparato, Isabella Mariotto, Dani Ornellas, Babu Santana, MC Carol, Rodrigo Bolzan, Simone Mazzer, Lucas Gouvêa, Samuel Toledo, Marina Merlino, Marcos Damigo, Georgette Fadel

Genre: Drama, 2022, 100 min.

  • Cláudio Alves - 77
77

CONCLUSÃO:

Começando no choque do sexo explícito e terminando em impasse nervoso, “Regra 34” é todo ele uma provocação em forma de filme. Entre a realização de Júlia Murat e a prestação destemida de Sol Miranda, surge-nos um estudo de personagem que é também um estudo do mundo enquanto conflagração de valores, contradições palimpsésticas e reconciliação moral e amoral até onde a vista alcança. Este filme é um confronto a não perder.

O MELHOR: A ousadia do projeto na sua totalidade.

O PIOR: Além de um uso hábil do enquadramento desequilibrado, demasiado espaço vazio aqui e ali, há pouca excitação formalista neste projeto. É pena, porque “Regra 34” merecia uma estética tão arrojada quanto o texto.

CA

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