'The Royal Hotel'. 71º Festival de San Sebastián

San Sebastián 2023: As heranças envenenadas de ‘The Royal Hotel’ e ‘Le Successeur’

A australiana Kitty Green apresentou na Competição, ‘The Royal Hotel’, um poderoso thriller e um filme de género terror, sobre a aliança de duas jovens, diante do medo e da ameaça. Um thriller, bastante forte sobre um medroso estilista e uma herança envenenada, é a proposta de ‘Le Successeur’, do francês Xavier Legrand.

Depois de ‘The Assistant’ (2019), um filme sobre um dia de trabalho de uma assistente de produção cinematográfica, sujeita aos abusos de poder do patrão, que remetia com oportunidade, para o ‘Caso Weinstein’, a realizadora australiana Kitty Green, estreou aqui na Selecção Oficial, este ‘The Royal Hotel’, a sua segunda longa-metragem de ficção. Trata-se de um filme sobre o tema da masculinidade violenta ou tóxica, porém agora regada com muito álcool. ‘The Royal Hotel’, conta a história de duas jovens canadianas — Julia Garner, com quem volta a trabalhar e Jessica Henwick —, que viajam de mochila às costas, pela Austrália, integradas no programa Work & Travel, que significa ir encontrando empregos temporários, para pagar uma viagem turística e de aventura. Só que as raparigas, acabam por ir para interior quase desértico do país, para trabalharem como empregadas de um bar imundo e decadente — dirigido por Billy (Hugo Weaving), um alcoólico inveterado e pela mulher aborígene —, localizado num pequeno inclave mineiro, povoado obviamente de muitos homens, que cometem todos os excessos, depois dos duros dias de trabalho.

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71º Festival de San Sebastián
‘The Royal Hotel’. © Via 71º Festival de San Sebastián




‘The Royal Hotel’, que dá nome ao filme é obviamente uma ironia, bem conseguida, que acaba por passar como herança para as raparigas, já que os donos a dada altura, abandonam o negócio. A partir daí, a realizadora constrói um thriller que aos poucos se transforma num filme de género, sobre a vingança e a amizade de duas mulheres sozinhas diante do perigo e do medo. É aí que reside um dos aspectos mais estimulantes do filme, na forma como, o trabalho noturno no bar, transporta-nos para momentos verdadeiramente aterradores e de suspense. A atmosfera ameaçadora é também um dos aspectos mais poderosos do filme, através da dicotomia e semelhança entre os dois espaços em que a ação se desenrola: o bar decadente e hostil, repleto de homens mal-educados e outros violentamente explícitos ao nível do psicopata, em que as duas protagonistas se encontram quase presas; e por outro lado, o exterior quase desértico, de uma aparente liberdade — dá para dar umas voltas até à cachoeira — pois a imensidão do território, acaba por encerrá-las no meio do nada, com poucas possibilidades de fuga. O que as une é uma amizade e o medo, diante de tanta hostilidade e brutalidade masculina.

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Outros pontos fortes de ‘The Royal Hotel’, são sem dúvida a tensão da história, que cria essas tais situações bastante inquietantes e perturbadoras, apesar de no início até parecer que as raparigas se vão adaptar e conquistar alguma simpatia e amizades; por outro as imagens de grande força visual, especialmente aquelas em que a realizadora, filma a reacção e sobretudo o sugestivo e misterioso rosto da loira encaracolada Julia Garner (a sua interpretação é extraordinária, como aliás a da ‘oriental’ Henwick), que demonstra muita firmeza e coragem. Apesar das suas pequenas fragilidades, a ausência total de uma mensagem femininista deve ser propositada, ‘The Royal Hotel’ é um filme de terror interessante, com uma poderosa e inteligente intriga, capaz de propor debates e reflexões, sobre a opressão e libertação de duas mulheres, e a sua aliança face ao medo e à ameaça constante. Não é uma maravilha, mas é uma obra, que merece o seu espaço entre os filmes de género dos últimos anos. Não sei porquê, é um filme que fez-me lembrar o clássico, ‘Fim-de-Semana Alucinante’, (1972), de John Boorman, o que não deixa de ser uma boa referência.

71º Festival de San Sebastián
‘Le Successeur’ ©71º Festival de San Sebastián




Vencedor do Prémio do Público, do Festival de San Sebastián, para o Melhor Filme Europeu em 2017 com ‘Custódia Partilhada’, o realizador francês Xavier Legrand oferece-nos nesta sua segunda longa-metragem, ‘Le Successeur’, também a história de uma herança envenenado e uma investigação sobre o tormento interior de um famoso estilista de alta costura de Paris (Marc-André Grondin), que tem de regressar a Montreal, para tratar do funeral do pai, com quem se relacionava pouco e que morreu de repente. Porém, uma terrível descoberta na casa de família herdada, onde o pai vivia sozinho, leva o protagonista, a um inexplicável desvio de comportamento e a situações incríveis. Enquanto isso o realizador vai-nos mostrando com um certo prazer, até digamos com algum sadismo, como o personagem, passo a passo, vai tomando decisões cada vez mais estúpidas e erradas.

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Por detrás de uma figura pública cheia de glamour e sucesso profissional, há também um caracter fraco, cobarde, medroso e egoísta, que acabamos também por ter uma certa compaixão, até porque o desacerto é enorme. Ao mesmo tempo, a história começa a mergulhar nas águas pantanosas de um thriller sombrio e intrigante sobre um tema contemporâneo, com algumas reviravoltas, que não sabemos muito bem, onde vai parar. Contudo, há pouco mais do que uma proposta narrativa mais ou menos óbvia, num filme que só começa a ser subtil e elíptico, quando se anuncia uma resolução final, ou seja uma solução, a única saída possível, que o infeliz protagonista se vê forçado a tomar, para ficar bem com a sua consciência, independentemente do que lhe vai acontecer no futuro. Apesar de tudo, ‘Le Successeur’ foram cerca de uma hora e meia de cinema, muito bem passadas.  

JVM, em San Sebastián

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