"Limiar" | © QueerLisboa

QueerLisboa ’21 | Limiar, em análise

Questões de género dominam “Limiar”, uma complexa examinação autobiográfica por parte da realizadora brasileira Coraci Ruiz. A obra integrou a competição de longas-metragens documentais do QueerLisboa 2021 e lá ganhou o prémio do público, votado pelas próprias audiências do festival.

Há filmes que são registos do seu próprio processo, exibindo as cicatrizes de um parto doloroso como mais-valias ao invés de defeitos. “Limiar”, realizado por Coraci Ruiz, afigura-se como um trabalho nesses termos. A premissa é bem simples, mesmo que os conceitos explorados no documentário não sejam. Ao longo de meses, a cineasta retratou-se a si mesma à medida que Noah, seu filho, se debruça sobre a questão da identidade de género, achando-se não-binário e aventurando-se pela toma de testosterona para erradicar os traços femininos ditados pela tirania do cromossoma.

Logo no teor do trabalho de câmara sentimos que estamos a ver um esboço mais do que um quadro finalizado com imaculada perfeição. Sempre próximo das caras de seus sujeitos, existe a sensação que Roriz foi filmando sem rumo definido, tão claustrofobicamente aproximada às pessoas como se esperasse encontrar resposta às perguntas na singela imagem de cara e se tivesse esquecido de filmar material adicional para a montagem. A cineasta quase acertou se essa fosse a sua suposição, pois muito nos dizem as faces de “Limiar”.

limiar critica queerlisboa
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Muito elas cantam sobre temores internalizados e imaginações enquadradas por conceitos antigos. Falamos na certeza que se desmancha em dúvida, nessas longas conversas de mãe para mãe, onde reminiscências iluminam um possível futuro na mesma medida que evocam sombras impenetráveis. A avó de Noah aparece várias vezes, refletindo sobre destemidas ações políticas do passado. Fala-se de vagas feministas, de género, de matrimónio e do consentimento parental ao que alguns julgam ser automutilações.

Fala-se sobretudo dos sacrifícios dos mais velhos e o modo como dores sofridas em tempos podem matar o entendimento para com os mais novos. Essas interações evocam ideias ricas, sem dúvida, mas são outro pormenor que consolida aquele aspeto de “Limiar” enquanto esquiço inacabado. Verdade seja dita, as conversas entre a avó e a mãe jamais se integram com o restante filme, afigurando-se como avenidas do pensamento que tiveram de ser abandonadas depois de um início promissor. A presença desses momentos no documentário é como um apêndice desnecessário deixado no corpo pela evolução.

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As cenas que ficam são as linhas mal apagadas que vivem debaixo de um desenho a lápis muito esmiuçado. Acontece que olhar para o passado, para a história, não é grande ajuda para Coraci compreender o filho não-binário que rejeita a feminilidade pela qual gerações anteriores tanto lutaram. Na verdade, quase sentimos a flor do ressentimento brotar dessas terras férteis da memória. A realizadora corta esses rebentos antes de crescerem e dominarem a fita, abortando uma ideia para seguir outras. Ter deixado esse resquício na obra pode saber a indisciplina na sala de montagem. Contudo, para nós, parece-nos mais uma prova de honestidade.

“Limiar” não tenta simplificar o processo de transição ou o seu impacto na família. Longe de procurar um arco narrativo limpo e doce, o filme segue uma direção amarga onde o erro é tão exposto como o triunfo. A narrativa geracional lá vai dando lugar a uma pesquisa mais focada em Noah, dando-lhe oportunidade para moldar o filme à sua perspetiva ao invés de somente ser olhado por outros. Quando o documentário se torna ativamente numa expressão do protagonista é o momento em que a fita atinge o píncaro da grandeza.

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Longe de serem ideias discutidas à distância, a crise de identidade e a conclusão não-binária assumem seu lugar merecido no centro do edifício cinematográfico. O uso ocasional de corpos de água metafóricos e home vídeos têm seu mérito, mas é a arte de Noah que mais nos diz sobre sua alma. Em desenhos e pinturas, pequenos apontamentos animados e confissões pictóricas, “Limiar” permite-nos descobrir a intimidade do seu sujeito e, no mesmo gesto, deixa que uma mãe compreenda o filho. Nunca há uma cena de epifania, mas sentimos uma onda de empatia apoderar-se do filme, da pessoa atrás e em frente à câmara.

Os limites do progressismo de uma família liberal são aqui postos em evidência, mas há esperança no horizonte. Paradoxalmente, essa esperança também surge pelo confronto direto com males maiores que iluminam o preconceito enraizado. O conservadorismo virulento de Bolsonaro marca presença em “Limiar” e suscita um novo ativismo com os olhos postos no que acontece agora ao invés do que aconteceu em décadas passadas. Frente a tais ódios, o filme manifesta-se enquanto hino da compreensão, enquanto canção de amor em prol da união. “Limiar” é Noah e Noah é um milagre, um raio de esperança brasileiro.

Limiar, em análise
queerlisboa limite critica

Movie title: Limiar

Date published: 30 de September de 2021

Director(s): Coraci Ruiz

Genre: Documentário, 2020, 77 min

  • Cláudio Alves - 75
75

CONCLUSÃO:

“Limiar” é um filme imperfeito que exibe essa imperfeição como prova de mérito, de honra e honestidade. O trabalho afigura-se exercício autobiográfico por parte da realizadora Coraci Ruiz e, no fim, é uma belíssima carta de amor para com o filho não-binário, Noah. Uma coda filmada a telemóvel pontua o fim com um lado mais risonho da transição, uma mostra da terapia de hormonas como veículo para a felicidade deste jovem. Termina o filme e queremos aplaudir de pé.

O MELHOR: Noah, sua arte, sua identidade fluida como um rio.

O PIOR: Este vai ser um filme difícil de ver para muitas pessoas, independentemente do lado em que estão no que se refere à legitimidade de identidades não-binárias. As contradições maternais doem muito, especialmente quando vemos a insegurança brilhar nos olhos da juventude.

CA

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