"Soy Niño" | © Outplay Films

Queer Lisboa ’22 | Soy Niño, em análise

Depois da estreia mundial em Milão, “Soy Niño” integra a competição para Melhor Documentário do 26º Queer Lisboa. O filme consiste num exercício de memória familiar por onde a realizadora chilena Lorena Zilleruelo retrata e homenageia o primo trans na sua jornada pela adolescência até à idade adulta.

Quando era pequeno, Bastian, então conhecido como Andrea, teve um desgosto em tempos de carnaval. O menino havia pedido por um fato de Homem-Aranha, querendo ser o super-herói para as festividades. Assim fizeram os pais, mas esta versão do figurino não era igual àquele que aparecia nas páginas da banda-desenhada ou no grande ecrã. Esta fatiota vinha com saia, um toque de feminilidade lá adicionado para tornara roupa ‘apropriada’ para raparigas. Face a esta prenda mal dada, lá ele refilou e muito chorou: “O Homem-Aranha não usa saias. Usa calças!” –  toda a família se recorda do episódio, quiçá um dos primeiros sinais de que quem eles suponham ser uma menina era, na verdade, um menino.

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© Outplay Films

Ao longo de “Soy Niño,” a máscara aparece numerosas vezes, ganhando o estatuto de um objeto totémico, cheio de significados pessoais numa odisseia à procura da autoidentidade. A jornada não é curta, acompanhando o seu protagonista desde os 12 aos 18 anos, essa idade difícil da adolescência quando o corpo da criança se transfigura em fisionomia adulta. É precisamente a alteração física que inspira o momento em que a transição começa na sua plenitude, despertando o pânico do rapaz que teme ver o corpo crescer em forma daquilo que ele não é. Rebatizando-se com a ajuda dos pais, Andrea torna-se David e, daí a uns anos será Bastian.

Antes desse final batismo, contudo, muito acontece, tudo capturado pelo olhar terno das câmaras. Lorena Zilleruelo está por detrás da maioria dessas imagens, mas outros operadores de câmara se manifestam aqui e ali. A realizadora é prima de Bastian apesar da diferença de idade grande – 25 anos – e acompanha o seu crescimento em jeito de cineasta documental. Também o processo é visto através do home video que o avô dos primos tanto ama, fazendo a fita oscilar entre dois registos de equânime intimidade. A perspetiva múltipla dá a fita a aparência de um álbum de família, uma espécie de caderno de crescimento anotado por aqueles que mais amam Bastian.

A mudança física vinda com a idade, com as hormonas e tratamentos, é estudada em jeito de prima curiosa ao invés de um olhar cínico. Também muda a voz e, mais importante, cresce o espírito. Mais do que um estudo frio da transição, este é um mural épico sobre o fim da infância num estilo que quase recorda o “Boyhood” de Richard Linklater. Aliás, o maior contraste entre as várias idades regista-se na atitude de Bastian para com a câmara, o modo como a encara e considera. Inicialmente, vê-se a insegurança daquele menino aterrorizado pelas mudanças rápidas dessa idade, alguém que não quer ser olhado e que, por isso, também não olha diretamente.

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Dessa imagem de confiança em falta gradualmente se passa a um teor mais assertivo e mais sincero. A pose cabisbaixa ergue-se pouco a pouco, ao longo dos meses e anos, até que o gesto direto domina o ecrã. Já perto do filme, em cena de barbearia improvisada, Bastian nunca desvia os olhos de nós, sua audiência através da câmara. Não há desafio no instante de confrontação, somente a serenidade de quem está confortável consigo mesmo. A liberação de viver consoante a verdade do espírito é óbvia, expressa com lirismo e economia. Não que Bastian pareça sempre em constante e crescente controle, ora de si ou do filme.

Pressões socioeconómicas e políticas fazem-se sentir e, ocasionalmente, a câmara toma dimensões voyeurísticas. Lá para a frente, uma sessão fotográfica em tronco nu aparece como forma de afirmação pessoal, mas não é a primeira vez que o peito de Bastian é enquadrado em jeito quase fetichista. O gesto jamais devém da má intenção, sendo usado como prelúdio para um dos assuntos mais sensíveis da fita. Falamos do modo como o Chile é um país católico de valores conservadores, ainda afetado pelos vícios preconceituosos de uma ditadura enraizada na psique coletiva da nação. O machismo domina a cultura e faz-se sentir na legislação.

Em “Soy Niño,” Zilleruelo fala dos problemas que Bastian defronta quando tenta mudar o nome e género em termos legais. Mais debilitante ainda é o modo como a falta de fundos bloqueia o auxílio cirúrgico. Acontece que a mastectomia é demasiado cara para a carteira dos pais, levando Bastian a desesperar enquanto vê inúmeros exemplos de ‘top surgery’ nas redes sociais. Sem meios financeiros ou um país onde a necessidade destes cuidados médicos é subsidiada, o rapaz vira-se para o exercício e a musculação. Essa tentativa de esculpir o corpo acaba por traçar um caminho para o futuro, tornando-se na inspiração profissional de Bastian. Ele quer ser professor de educação física e ajudar jovens trans como ele a aceitarem e moldarem seus corpos.

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Não é só Bastian que encontra propósito na história de transição, não é só ele que se transforma com o passar dos anos. Inicialmente, o avô tinha dificuldade em reconhecer a identidade assumida do neto e insistia no nome feminino do primeiro batismo. Contudo, chegados os 18 anos, já o patriarca mostra completa adoração e apoio para com o jovem – tudo expresso num belíssimo episódio em torno da grelha no quintal. No que se refere aos pais de Bastian, eles tornam-se militantes, viajando pelo país para educarem outros pais de juventude queer e promover mudanças na legislação. Seu pai, em particular, torna-se num ativista ferrenho, levando o filme por interlúdios de protesto e manifestação. São explosões de cor e ruído num filme muito privado, quieto e sussurrado. Na variação tonal se atinge o êxtase, um raio de esperança que renega a tragédia e marca a vida de Bastian como uma vitória inspiradora.

Soy Niño, em análise
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Movie title: Soy Niño

Date published: 21 de September de 2022

Director(s): Lorena Zilleruelo

Genre: Documentário, 2022, 62 min

  • Cláudio Alves - 80
80

CONCLUSÃO:

Uma reflexão familiar, uma carta de afeto de prima para primo, um retrato em forma de filme – “Soy Niño” é tudo isso e muito mais. Aqui Bastian Matthew Jorquera Tapia se prova um herói com coragem para viver segundo a verdade do seu ser. O filme é maravilhosa celebração dele e daqueles que o rodeiam, que o apoiam e muito amam.

O MELHOR: Estes temas de juventude trans são incrivelmente atuais, dando urgência política a um documentário extremamente íntimo. Aqui se consta aquela verdade absoluta – o pessoal é político.

O PIOR: A realizadora e suas tentativas de criar paralelos com a vida do seu sujeito nem sempre funcionam. Veja-se a tentativa de estabelecer ligação entre a sua emigração para França aos 18 anos com a mudança oficial de nome e género por parte de Bastian. Entendemos o impulso, mas é uma mácula da fita e um exemplo da perspetiva cis sobrepondo-se às especificidades da vida trans.

CA

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