"C'è un soffio di vita soltanto" | © Kimerafilm

Queer Lisboa ’22 | C’è un soffio di vita soltanto, em análise

C’è un soffio di vita soltanto,” também conhecido como “A Breath of Life,” é um importante documentário sobre a experiência trans no Holocausto. Além disso, é um belíssimo retrato e peça de memória, com realização de Matteo Botrugno e Daniele Coluccini. O filme integra a competição de longas-metragens documentais na 26ª edição do Festival Queer Lisboa.

Lucy Salani viveu uma história sem igual, qual reflexo do conturbado século XX, suas atrocidades e maravilhas. Quando a conhecemos, por via da câmara de dois documentaristas, ela tem 95 anos e vive num apartamento que é como caixinha de memórias, objetos totémicos de outras vidas espalhados por todo o lado. Nomeadamente, saltam à vista umas quantas fotografias antigas, amareladas com a idade e, em alguns casos, escondidas em álbuns só abertos para o olho curioso dos cineastas. Em tempos, Lucy dava pelo nome de Luciano, tendo nascido com biologia masculina e nome a condizer.

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Não que Luciano tenha que ser somente nome de homem. Numa das muitas passagens em que o filme se inflama de humor, a velhota cospe palavras de desafio e radicalismo. Se ela é mulher e se quer chamar Luciano, então o nome passa a ser de mulher e que se lixem as convenções alheias que a ela nada dizem respeito. O espírito valente da senhora faz-se ouvir em momentos tais, levando o próprio espetador a questionar suas expetativas sobre a sua figura. Apesar de Lucy se nomear como mulher transsexual – termo desatualizado para as gerações novas – isso não indica necessariamente uma visão retrógrada sobre a sua identidade ou comunidade.

Segundo o filme, Lucy é a mulher trans mais velha de Itália, mas esse não é o único fator que desperta interesse do artista documental, do jornalista ou espetador. Mais marcante, talvez, é o seu estatuto enquanto uma das últimas sobreviventes do campo de concentração em Dachau. São essas memórias dolorosas que servem de alicerce para as interrogações da fita. Também é um ponto de partida estrutural, um lugar para as passagens finais, quando Lucy regressa às ruínas desse sítio que tanto a fez sofrer. Depois de ouvirmos a aterradora história de como ela era forçada a transportar corpos – alguns deles ainda com vida – para a incineradora, a imagem de Lucy, em cadeira-de-rodas, mirando a chaminé meio destruída dá calafrios.

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Sim, “C’è un soffio di vita soltanto” é uma obra que muito se apoia na dor do indivíduo, nas memórias que a assombram e fazem do seu testemunho algo tão fulcral para o entendimento do mundo e da experiência trans ao longo da História. Contudo, definir esta fita como poço sem fundo de miséria seria erróneo. Há júbilo no registo, como se cada fotograma fosse homenagem afetuosa à sua personagem principal. Aliás, a câmara de Botrugno e Coluccini é perfeitamente obcecada com a paisagem facial da senhora, justificando o abuso de grandes planos pela singular maravilha que é esse rosto antigo. Trata-se de uma escultura feita pelo cinzel do tempo, um monumento de sobrevivência, um reflexo de humanidade a que nenhuma palavra faz jus.

Pensemos na cena do testemunho aterrador, ou noutra reminiscência sobre os abusos de um padre para com a pequena Lucy. Falando do modo como as crianças se culpam a si mesmas pelos crimes dos adultos, há uma plasticidade espetacular nessa cara. Também há humor, quando ela parte desse ponto para falar dos seus encontros mais recentes com padres. Reparem na fúria mesclada de piada seca que se manifesta em anedotas sobre homens religiosos que lhe vêm abençoar a casa, mas levam com a porta fechada na cara. Sem cortar ou apelar à imagem de arquivo, os realizadores deixam que Lucy seja a máxima contadora da sua própria história, sem interpretações justapostas ou outros filtros que tais.

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O resultado é cru e incrivelmente simples. Dito isso, é dessa abjeta simplicidade que devém o poder emocional do trabalho, sua particular autenticidade e sentido de verdade cristalizada em forma de filme. Olhando diretamente para Lucy, sentimo-nos numa conversa íntima, numa educação preciosa. Reflete-se sobre a experiência partilhada por tantas mulheres trans de gerações passadas e classes económicas mais baixas, quando a prostituição é a única alternativa. Fala-se do medo de uma nonagenária para com o Coronavírus, tendo sobrevivido a tanto para potencialmente definhar com esta praga moderna.

Há postais de Dachau e viagens fatídicas, há um boxset de DVDs do “Dia da Independência” e outros detalhes que tais. Acima de tudo, há um entendimento da importância da senhora sem abafar a sua humanidade. Imagens planetárias, meio abstratas, elevam a pessoa ao patamar cósmico, mas o plano digital da face enrugada traz o filme de volta à Terra. O espaço e o olhar, o eclipse e a lágrima, a célula e a lembrança – tudo acaba como começa, o embrião ganha fôlego e a morte é só mais uma aventura. A paz assim se abate sobre “C’è un soffio di vita soltanto,” um verdadeiro sopro de vida que merece ser visto. É certo que alguns limites formalísticos podem deixá-lo aquém do grande cinema, mas é um poderoso retrato mesmo assim.

C'è un soffio di vita soltanto, em análise

Movie title: C'è un soffio di vita soltanto

Date published: 18 de September de 2022

Director(s): Matteo Botrugno, Daniele Coluccini

Genre: Documentário, 2021, 95 min

  • Cláudio Alves - 70
70

CONCLUSÃO:

“C’è un soffio di vita soltanto” ou “A Breath of Life” é um importante documentário sobre história insólita, a vida de uma mulher que é também o século XX personificado. Como o tema deste Queer Lisboa 26 nos recorda, a memória é crucial e é necessário perpetuar a lembrança de vidas marginalizadas ou o esquecimento destruir-nos-á. A moldar as nossas memórias, o cinema é fonte de conhecimento, é espetáculo e é um poema a 24 fotogramas por segundo.

O MELHOR: A figura de Lucy, em si. Que mulher!

O PIOR: A vaga displicência formal leva a que algumas das ideias visuais mais extremadas nunca cheguem à coerência. São fricções interessantes, mas não funcionam na totalidade.

CA

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