"Nuestros Cuerpos Son Sus Campos de Batalla" | © Queer Lisboa

Queer Lisboa ’22 | Nuestros Cuerpos Son Sus Campos de Batalla, em análise

A Competição para Melhor Documentário do 26º Queer Lisboa começa com um exemplo de cinema militante. “Nuestros Cuerpos Son Sus Campos de Batalla” é a primeira longa-metragem da realizadora Isabelle Solas, um documentário cheio de fervor revolucionário que representa um retrato da comunidade transgénera na Argentina. O filme ganhou o Grande Prémio do festival Chéries-Chéris em 2021.

Questões de género e identidade há muito cativam a realizadora Isabelle Solas, especialmente no que se refere à interseção dos dois assuntos no ativismo trans. Foi esse interesse, essa vontade, que a levaram à comunidade trans da Argentina onde a cineasta apontou a sua câmara para vidas individuais e movimentos coletivos, considerando a colisão entre feminismo radical e o esforço militante de ativistas queer. Mais especificamente, o interesse de Solas para com este milieu teve origem num feito onde a luta por direitos civis realmente se manifestou numa mudança legislativa com reais efeitos na sociedade.

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© Queer Lisboa

Em 2012, a Lei de Identidade de Género estipulou que sexo e género eram dois conceitos diferentes perante a autoridade estatal argentina. Essa contextualização seria preciosa para audiências internacionais não tão bem informadas sobre a história recente da Argentina. Contudo, “Nuestros Cuerpos Son Sus Campos de Batalla” jamais oferece estes dados em jeito claro. Ao invés, o filme fica-se pelo tenor da observação passiva, articulando os seus discursos sociopolíticos através do retrato puro e duro, sem floreados ou molduras jornalísticas. Outro dado importante que o filme só esboça em traços gerais é a situação de violência transfóbica no país.

Note-se que o documentário começa com o julgamento centrado no homicídio de Diana Sacayán, uma ativista de grande perfil. A condenação do seu atacante marcou um importante ponto na justiça argentina, tendo sido a primeira decisão judicial a refletir as mudanças legislativas de 2012. Só que esta longa-metragem não é sobre Sacayán nem sobre nenhuma das muitas mulheres transgénero que todos os anos perdem a vida em modos violentos na Argentina. O filme preocupa-se com a luta dos vivos ao invés do legado daqueles que já partiram, focando-se no agora em detrimento do outrora.

Esse gesto obstinado justifica a falta de contexto, mas não ajuda a obra a ganhar forma. Meio fluido e disforme, “Nuestros Cuerpos Son Sus Campos de Batalla” é trabalho precioso, mas frustrante, valendo mais pelas realidades que projeta no grande ecrã do que pela forma como faz essa mesma projeção. Por outras palavras, não há grande brio na realização, mas as figuras principais da fita dão-lhe valor. São elas Claudia e Violeta, duas mulheres cujas histórias pouco se cruzam, a não ser no paradigma comunitário em que se enquadram. Num contexto cinematográfico em que as vidas trans são tantas vezes retratadas como tragédias solitárias, há muito valor nesta observação de existências individuais marcadas pela solidariedade coletiva.

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Entre a ação ativista e a intimidade doméstica, Solas encontra dimensões multifacetadas nas suas “personagens principais” e assim desenha acessos distintos à questão da luta pelos direitos e à esfera militante. Claudia, por exemplo, é uma figura ebuliente cujo espírito vivaço enche todo o espaço vazio em seu redor. Ela é uma estrela e um bálsamo para a alma, um íman de carne e osso que forma comunidade pelo simples ato de partilhar sua “joie de vivre” com amigos e conhecidos. Na sua história, podemos vislumbrar a família improvisada do indivíduo queer, mas também tem presença a família de sangue.

Ao contrário de tanta gente nesta demografia, Claudia tem relações próximas com os progenitores, incluindo a mãe que aparece no documentário, tão cheia de orgulho pela filha. Em contraste, Violeta é figura mais isolada e, paradoxalmente, mais pública também, sendo antropóloga e manifestante por excelência. Se o ativismo de Claudia se caracteriza pela tentativa de encontrar interesses comuns, a outra mulher representa uma abordagem combativa, onde a discussão civil não esconde radicalismos que podem ser difíceis de tolerar até para os aliados mais fiéis. A discussão é importante e revela quanto até o público mais liberal pode ser educado por aqueles com experiências distintas das suas.

O debate sobre se o trabalho de sexo é exploração ou não é um momento-chave da fita, entrando num paradigma de discussão onde a gente cis progressista tende a cair em conservadorismos púdicos. Logo através destas experiências distintas dentro do mesmo gesto ativista, Solas sugere a pluralidade de um movimento heterogéneo, unido pela vontade de lutar em nome da dignidade humana que é sua por direito. Além disso, Solas também estende o enfoque do documentário a outras mulheres que existem na órbita de Claudia e Violeta, inclusive retratando palestras e esforços de museu, educação cultural e celebração. Nesse último ponto chegamos ao clímax de “Nuestros Cuerpos Son Sus Campos de Batalla,” onde uma exposição fotográfica invoca os fantasmas da História e promulga uma visão otimista do futuro.

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© Queer Lisboa

A luta nunca acaba, mas não é motivada somente pelo desespero. A esperança é importante também e Solas abre espaço a essa luz, mesmo quando olha diretamente para as injustiças mais tristes de uma sociedade cheia de preconceitos. Nesse sentido, o filme é um testemunho, mas também é canção de amor a um movimento revolucionário. É um manifesto de irmandade e um poema em prol das lutadoras que mudam o mundo todos os dias, ora pelo esforço militante ou pelo simples ato de sobreviverem e assim afirmarem a sua verdade. Claudia e Violeta, suas aliadas e outras que tais, merecem aplausos, merecem o holofote que um filme assim brilha sobre elas.

Nuestros Cuerpos Son Sus Campos de Batalla, em análise
nuestros cuerpos son sus campos de batalla critica queer lisboa

Movie title: Nos corps sont vos champs de bataille

Date published: 17 de September de 2022

Director(s): Isabelle Solas

Genre: Documentário, 2021, 100 min

  • Cláudio Alves - 65
65

CONCLUSÃO:

Em termos formalistas, “Nuestros Cuerpos Son Sus Campos de Batalla” deixa muito a desejar. Enquanto esforço jornalístico também peca, nesse caso pela falta de contexto. Contudo, há muito valor nas vidas que a realizadora Isabelle Solas captura com a câmara. As mulheres ativistas fazem o filme e são suficientemente cativantes para elevarem e justificarem todo o trabalho cinematográfico.

O MELHOR: A comunidade que aqui se afirma e mostra, Claudia e Violeta, suas figuras heroicas e coragem sem estribeiras.

O PIOR: A falta de contexto, a amorfia do exercício e displicência formal no que se refere à montagem, ao ritmo e fotografia. Veja-se um momento de performance em que uma drag queen faz lip sync ao som de Edith Piaf. Poderia ser uma cena extraordinária, não fosse a pressa do engenho que recorta e fragmenta o número sem jeito nem a elegância que lhe é devida.

CA

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