Quo Vadis, Aida?, em análise | Melhor Filme Internacional
“Quo Vadis, Aida?” mostra os horrores do genocídio e a inação criminosa das Nações Unidas durante a Guerra Bósnia dos anos 90. Este devastador feito cinematográfico representa a Bósnia e Herzegovina na competição dos Óscares. A obra está entre os cinco nomeados na categoria de Melhor Filme Internacional e é, quiçá, o único concorrente capaz de destronar o favorito, “Druk”.
A guerra da Bósnia e suas muitas atrocidades representam um dos capítulos mais negros na História Europeia do século XX. Considerando tudo o que se passou durante esses cem anos, tal afirmação tem um peso monumental. Não que seja título imerecido. Entre batalhas sanguinárias e imperdoáveis genocídios, esse conflito pôs a nu a futilidade de poderes internacionais e fez de todo o mundo culpado do crime da inação. As Nações Unidas têm muito que se envergonhar, muitos crimes que expiar, no que se refere a esta guerra e talvez nenhum dos seus eventos reflita isso melhor que o massacre de Srebrenica.
Aconteceu em Julho de 1995, quando mais de oito mil homens bósnios muçulmanos foram exterminados pelas forças sérvias. O que tornou a ocorrência ainda mais hedionda e chocante foi a intervenção incompetente das Nações Unidas. A ONU havia declarado a cidade de Srebrenica como uma área segura sob sua proteção, mas uma série de questões burocráticas levaram à retirada e abandono da população bósnia à mercê do exército inimigo. O que se seguiu foi uma carnificina com bases ideológicas na aniquilação de certas etnias, assim como a violação em massa das mulheres que sobreviveram. Cometendo o crime de nada fazer, a ONU foi cúmplice dos genocidas.
Considerando que ainda nem 25 anos passaram desde o horror, o trauma de Srebrenica ainda atormenta muitos, especialmente quando se considera que a maioria dos assassinos nunca sentiu repercussão. No máximo deste pesadelo da vida real, as mulheres cujos corpos foram violentados e famílias dizimadas, tiveram de viver lado-a-lado com os criminosos que lhes causaram tal dor. Com o fim da guerra, guerreiros voltaram a tornar-se civis e os ditames da paz incerta decretaram tais condições. As cicatrizes históricas ainda doem, quase que em carne viva, pelo que não nos admira ver cineastas bósnios atormentados por Srebrenica.
Jasmila Zbanic é uma dessas artistas do grande ecrã que se veem assombradas pelo passado sangrento do seu país. Com “Quo Vadis, Aida?”, a realizadora vem partilhar essa cruel herança com o resto do mundo. Longe de examinar a História com a frieza clínica de uma jornalista ou académica, Zbanic escolhe a estratégia do drama, da imersão sensorial, da emoção que queima. Usando mecanismos pedidos emprestados ao thriller, ela faz das horas que antecederam o massacre de Srebrenica um inquietante conto cinematográfico. Quem quer que conheça História saberá o desenlace final desta triste trama, mas a realizadora sabe como nos fazer o coração palpitar.
Seguindo os ensinos famosíssimos de Hitchcock, Zbanic mostra como o suspense não devém da surpresa, mas do nervosismo. Se uma bomba relógio rebentar a meio de uma cena inócua, sentimos o choque no momento, mas não há a aflição daquele que antecipa o desastre. Muito mais eficaz é assegurar o espetador da explosão vindoura e deixar que ele sofra enquanto vê as muitas peças do puzzle sangrento se montarem, as condições para a tragédia manifestando-se perante audiências impotentes. Ao longo de “Quo Vadis, Aida?” muito será o cinéfilo que vai sentir vontade de atacar o ecrã, de esticar suas mãos para a imagem na esperança de salvar alguém daquele suplício que se avizinha.
No entanto, não há nada a fazer. As nossas lágrimas não mudam o que aconteceu. Além de tudo isso, Zbanic ainda tem mais um elemento de génio com o qual dá vida ao pesadelo lúcido deste episódio histórico. Referimo-nos à Aida do título, uma intérprete da ONU que também é residente de Srebrenica. Quando as autoridades internacionais anunciam a retirada, ela tenta desesperadamente salvar a vida do marido e dois filhos e essa missão é o que dá forma e fôlego ao filme. Nunca miramos os acontecimentos como divindade distante, mas como participantes que sofrem ao lado de Aida.
Numa das passagens mais perturbadoras, ela vê antigos alunos seus deleitarem-se com a possibilidade de matarem seus vizinhos em nome da limpeza étnica. Ver a face estarrecida de Jasna Djuricic como Aida é ver a Humanidade confrontar-se com a sua mesma capacidade para o Mal. Trata-se de uma daquelas prestações que nos propelem do assento e nos fazem querer aplaudir a imagem projetada do filme. Djuricic não perdoa e não foge ao assombro que são as emoções de Aida, sua vida, seu tormento. Testemunha-la durante as cenas finais de “Quo Vadis, Aida?” é muito difícil.
Queremos desviar o olhar, evitar essa visão de incompreensível perda. Queremos chorar e gritar, gritar até que a garganta arranhada se encha de sangue e nos saiam torrentes escarlate da boca. Queremos sentir dor como bálsamo para atenuar o coração fustigado. Trata-se de um feito cinematográfico monumental, algo que todos deviam ver, nem que seja para entender o tipo de crime humano que jamais deve acontecer de novo e como a inação perante a injustiça é também ela vil, imperdoável, inumana. “Quo Vadis, Aida?” é um dos filmes do ano, disso não há dúvida. Quiçá, um dos filmes da década também!
Quo Vadis, Aida?, em análise
Movie title: Quo Vadis, Aida?
Date published: 24 de March de 2021
Director(s): Jasmila Zbanic
Actor(s): Jasna Djuricic, Izudin Bajrovic, Boris Ler, Dino Bajrovic, Johan Heldenbergh, Raymond Thiry, Boris Isakovic, Emir Hadzihafizbegovic, Reinout Bussemaker, Teun Luijkx
Genre: Drama, História, Guerra, 2020, 101 min
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Cláudio Alves - 95
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José Vieira Mendes - 80
CONCLUSÃO:
Agonizante, este é um filme que lacera o espetador, o mastiga e cospe. “Quo Vadis, Aida?” é um grande feito da realizadora bósnia Jasmila Zbanic, tão mecanicamente perfeito como os melhores thrillers de Hitchcock, tão acutilante como a sua história. Ao dramatizar um hediondo crime contra a Humanidade, Zbanic concebeu uma obra-prima da sétima arte.
O MELHOR: A face inesquecível de Jasna Djuricic quando vê o cúmulo do Mal em forma humana, em toda sua casualidade atroz, sua mundanidade nojenta. Que tremenda prestação.
O PIOR: A dor com que o filme nos deixa. Este filme não é fácil de suportar e só quem se sente mentalmente preparado deve aventurar-se pelo flagelo cinematográfico de “Quo Vadis, Aida?”.
CA