O incansável e muito requisitado Josh O’Connor. ©2025 The Mastermind Film Inc.

Resurrection, Woman and Child, Jeunes Mères e The Mastermind: memória, maternidade e resistência | Diário do Festival de Cannes (Dia 12)

“Resurrection”, “Woman and Child”, “Jeunes Mères” e “The Mastermind”, os últimos quatro filmes da Competição Oficial de Cannes 2025 e que encerraram o concurso à Palma de Ouro, são retratos íntimos sobre luto, maternidade e resistência e uma afirmação clara de que o cinema continua a ser uma arte de escuta e persistência.

“Resurrection” de Bi Gan, “Woman and Child”, de Saeed Roustaee, “Jeunes Mères”, de Jean-Pierre e Luc Dardenne e “The Mastermind”, de Kelly Reichardt, fecharam a Competição do Festival de Cannes 2025 e são gritos silenciosos sobre a memória, maternidade e resistência. São obras distintas na sua forma, mas unidas pela urgência de escutar, recordar e persistir.

Numa 78ª edição do Festival de Cannes marcada pela introspeção, e para quem tinha pensado que tudo se resolve nos primeiros dias do concurso, este fecho da Competição dos candidatos à Palma de Ouro 2025, reafirma a capacidade do cinema contemporâneo e de autor nos surpreender e mostrar a sua grandeza e diversidade para além dos filmes de Hollywood e ser o primeiro a interrogar o presente, a actualidade, com sensibilidade e coragem.

Resurrection
“Resurrection” é um épico dividido em seis capítulos. ©Dangmai Films

“Resurrection”: Bi Gan e o sonho como arquivo de memórias

Sete anos após o seu último filme, o realizador chinês Bi Gan regressou com uma obra monumental e enigmática. “Resurrection” é um épico dividido em seis capítulos, cada um dedicado a um dos cinco sentidos e à mente. Protagonizado por Jackson Yee, Shu Qi e Li Gengxi, o filme constrói uma travessia sensorial pela história da China — e do próprio cinema.

Neste mundo distópico, onde a humanidade perdeu a capacidade de sonhar, apenas os ‘Fantasmers’— uma espécie de Nosferatu — guardam o acesso à dimensão onírica. A jornada de uma mulher por esse território perdido é também uma metáfora para o próprio acto de filmar e ver cinema. Bi Gan funde referências que vão de Murnau a Wong Kar-wai, numa narrativa que mistura ficção científica, melodrama, comédia e noir, com resultados desiguais mas sempre visualmente hipnotizantes.

VÊ TEASER DE “RESURRECTION”

Com 155 minutos de duração, “Resurrection” — estas sessões nocturnas das 22h, são um inferno, para o cansaço dos acreditados — é menos uma história do que um gesto: uma meditação poética sobre o poder da imagem e do sonho. Destacam-se os episódios terceiro e quarto, que exploram lendas chinesas com humor e lirismo, e o penúltimo, situado num porto decadente em 1999, que evoca o romantismo trágico de Godard ou Melville. O filme não procura coesão narrativa, mas sim criar uma experiência sensorial que homenageia a memória e a imaginação. Mas é um filme difícil, uma experiência radical para os espectadores, que terá muita dificuldade em chegar às salas de cinema comerciais.

Woman and Child
“Woman and Child”, um dos filmes mais contundentes. ©Amirhossein Shojaei & Saeed Roustaee

“Woman and Child”: A maternidade como resistência silenciosa

O iraniano Saeed Roustaee — foi muito contestado por alguns dos seus pares do Irão, que dizem que se trata de um filme do regime — assina, com “Woman and Child”, sem dúvida um dos filmes mais contundentes desta Competição 2025. É centrado na bela Mahnaz (Parinaz Izadyar), uma mãe solteira, enfermeira, que enfrenta a perda do filho num Irão dominado pela rigidez patriarcal.

O filme transforma o drama íntimo numa denúncia social de rara força. Num registo realista e claustrofóbico, mas em jeito de melodrama clássico, Roustaee conduz-nos por um apartamento (ou um hospital) onde o vidro e a transparência expõem as feridas emocionais das personagens. Tal como em “Os Irmãos de Leila”, o cineasta iraniano investe numa protagonista que recusa a submissão. Mahnaz, traída pela irmã e pelo companheiro, canaliza a dor para um plano de vingança que desafia convenções morais. Tremendo! As crianças ocupam um papel central — não apenas como vítimas, mas como agentes de revelação e mudança.

Roustaee constrói assim um retrato bastante tenso e empático da sociedade iraniana, onde o espaço doméstico se torna palco de luta e afirmação. É um cinema político, mas profundamente enraizado no emocional. Enfim é sem dúvida, e apesar da contestação um dos grandes candidatos à Palma de Ouro 2025 e como “Resurrection” também é uma bela homenagem ao cinema.

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Jeunes Mères
“Jeunes Mères”, uma obra luminosa e comovente. ©Christine Plenus

“Jeunes Mères”: O gesto mínimo que resiste

Os veteranos Jean-Pierre e Luc Dardenne regressaram por sua vez com “Jeunes Mères”, uma obra luminosa e comovente, ao contrário do que é habitual nos filmes dos irmãos belgas, este acompanha um grupo de adolescentes grávidas ou com filhos recém-nascidos numa instituição de acolhimento, todas elas estreantes como actrizes.

É talvez o filme mais caloroso dos irmãos nos últimos anos e até parece um documentário. Porém, sempre fiéis ao seu estilo depurado, o filme vai observando o quotidiano com rigor documental e grande sensibilidade. Cada jovem é retratada com atenção e empatia, sem julgamentos nem dramatismos excessivos, quanto à sua situação.

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VÊ  TRAILER DE “JEUNES MÈRES”

A maternidade precoce, longe de ser romantizada, surge como espaço de luta, ternura e reconstrução de vida e esperança. Inspirado em visitas reais a instituições de acolhimento, “Jeunes Mères” afasta-se mesmo do tom habitualmente urgente dos Dardenne para explorar, com doçura e pluralidade, vidas em transição. Sem protagonistas heróicas nem antagonistas claros, o filme confia na força dos pequenos gestos — olhar, cuidar, esperar — na naturalidade, para iluminar zonas de exclusão social e emocional. Incrível!

The Mastermind
“The Mastermind”, um retrato melancólico sobre um homem em fuga. ©2025 The Mastermind Film Inc.

“The Mastermind”: retrato melancólico de um ladrão de arte

A norte-americana Kelly Reichardt encerra mesmo a Competição 2025, com “The Mastermind”, um retrato melancólico de um falhado e da sua decadência moral, protagonizado pelo incansável e muito requisitado Josh O’Connor, protagonista também de “The History of Sound”. A história deste filme de Reichardt, gira em torno de um um ‘menino do papá e da mamã’ falhado e desempregado que deixa a família, a mulher e dois filhos, em fuga por ter sido o ‘cabecilha’  de um atípico e atrapalhado assalto a um museu de província, mas que envolve o roubo de valiosas obras de arte contemporânea. O filme tem como pano de fundo a Guerra do Vietname na década de 70 e espelha a ideia de activismo anti-guerra e por outro lado a desorientação dos EUA na altura e a relação com a política externa norte-americana, que se prolonga até hoje.

Num canto tranquilo do Massachusetts, por volta de 1970, JB Mooney (O’Connor), um desempregado tornou-se um ladrão amador de arte, planeia o seu primeiro grande assalto. Mas quando as coisas dão para o torto, a sua vida vira de cabeça para baixo e em fuga JB Mooney vai tornar-se num errante à procura de um lugar seguro, para não ser preso. Por ironia do destino acaba mesmo por ser capturado, da forma mais insólita e inesperda. Porém, sempre num registo minimalista, contido e irónico, Reichardt constroi um drama introspectivo onde o silêncio diz mais do que as palavras, e por isso O’Connor, parece o actor perfeito para estes papéis. A casa vazia, as rotinas quebradas, os objetos deixados para trás, as crianças e as conversas ao telefone com a mulher, tornam-se testemunhos de uma vida despedaçada e sem rumo.

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“The Mastermind” não procura grandes revelações de personalidade, nem catarses fáceis e muito menos a espectacularidade, de cenas de acção de perseguições de automóveis, típicas do assalto ao museu, ou mesmo uma grandiosa homenagem à história do cinema como “Resurrection”. Em vez disso, oferece uma meditação sobre perda e responsabilidade ou melhor a irresponsabilidade concreta, de uma indivíduo que tinha tudo para fazer melhor da sua vida.

Resurrection
Shu Qi em “Resurrection”, um filme sobre o cinema. ©Dangmai Films

Um gesto comum: escavar a intimidade, restaurar a escuta

Apesar das suas diferenças estilísticas e geográficas, “Resurrection”, “Woman and Child”, “Jeunes Mères” e “The Mastermind”, os quatro filmes que encerram a Competição de Cannes 2025 partilham um gesto essencial: olhar para dentro, escavar a intimidade, restaurar a escuta.

Seja através da linguagem sensorial e simbólica (“Resurrection”), da denúncia social (“Woman and Child”), da observação documental (“Jeunes Mères”) ou da reflexão existencial (“The Mastermind”), todas estas obras propõem um cinema atento ao detalhe humano. Num festival onde coexistiram o excesso estilizado e a crueza emocional, este conjunto final oferece um fecho digno e coerente. São retratos de um mundo fragmentado, mas ainda habitado por gestos de ternura, coragem e resistência.

Cannes 2025: um final à altura da memória e da resistência

A Competição Oficial de Cannes 2025 termina assim com uma afirmação clara: o cinema continua a ser uma arte de escuta e persistência. Estes quatro filmes não procuram o ruído nem o choque, mas a profundidade e a verdade. Num tempo em que tudo grita, eles sussurram — e é nesse sussurro que reside a sua força transformadora.

JVM



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