©Medeia Filmes

Os Irmãos de Leila, em análise

“Os Irmãos de Leila” é a mais recente obra do cineasta iraniano, Saeed Roustayi!

FILHOS DE UM PATRIARCA COM PÉS DE BARRO!

Lê Também:   A Mulher que eu Abandonei, em análise
Os Irmãos de Leila
©Medeia Filmes

Quanto vale a dignidade perdida de um velho homem, Esmail (Saeed Poursamimi), casado com uma mulher aparentemente mais conformada do que submissa, viciado em ópio, pai de cinco filhos, quatro rapazes e uma rapariga, uns mais rebeldes do que outros, representante dos valores sociais e económicos que balizam uma classe marginalizada e penalizada pelas pesadas circunstâncias impostas por sucessivos embargos ocidentais e ainda pelas contradições inerentes ao desenvolvimento desigual no seio da sociedade iraniana? Este velho senhor com ar de profeta pretende ser o patriarca e a figura de proa de um grupo de familiares que circulam pelos sinuosos caminhos cruzados de uma cidade como Teerão, metrópole dividida entre uma zona Sul mais popular e a zona Norte mais voltada para os índices de bem-estar e modernidade que atestam a presença de um novo-riquismo geralmente associado a certas actividades imobiliárias ou de especulação financeira, algumas pouco recomendáveis, que deram origem a uma classe média que vive confortavelmente, coisa que não sucede noutras áreas menos favorecidas e empobrecidas da vasta e fervilhante malha urbana. Uma cidade, capital de um país acossado por inúmeras batalhas a favor da dignidade colectiva de um povo, maioritariamente jovem, que sente o destino escapar-se-lhe por entre os dedos se nada fizer para o mudar e que, por isso mesmo, não se verga ao fatalismo imposto pela ideologia dominante nem acredita nas falsas promessas dos países ocidentais, cujas sanções acabam por atingir sobretudo os mais fracos e desprotegidos. E mais uma vez pergunto: quanto vale a dignidade, ou melhor, o sentido da vida, de um putativo patriarca do seu clã? Por acaso sabem os leitores o valor do ouro nos diferentes e globalizados mercados internacionais? Digamos que para a família de Leila, e em particular para os seus irmãos, o futuro possui o ilusório e muito volátil valor de quarenta moedas. Como as Libras que outrora por aqui se compravam para os mesmíssimos efeitos, são moedas feitas de ouro, metal precioso que permite realizar certos investimentos que, considerando as regras mais básicas do capitalismo, rapidamente se valorizam ou desvalorizam em função de múltiplas variáveis como, por exemplo, a velocidade a que Donald Trump publicava um desvairado Tweet nos Estados Unidos, influenciando assim o mercado cambista durante a sua mais do que controversa passagem pela Casa Branca. Facto que iremos constatar de um modo particularmente contundente no filme BARADARAN-E LEILA (OS IRMÃOS DE LEILA), produzido em 2021-2022, escrito e realizado por Saeed Roustayi. Distribuição em Portugal da APM actions per minute Produções.

Os Irmãos de Leila
©Medeia Filmes

Do realizador, pela mão da LEOPARDO FILMES e MEDEIA FILMES, ficámos a conhecer na primeira metade deste ano a sua anterior e corajosa longa-metragem, METRI SHESH-O NIM (A LEI DE TEERÃO), 2019, notável incursão pelos meandros da corrupção dos ricos e poderosos, mas igualmente pelas franjas de marginalidade das classes mais pobres, numa mistura explosiva que encontrava o rastilho de uma autêntica explosão de emoções no interior de uma prisão gerida por um peculiar sistema prisional onde um polícia, o protagonista cujo actor agora regressa como um dos irmãos de Leila, procurava manter a dignidade da sua missão e função através de uma luta séria e sem concessões contra o crime organizado. Esta obra foi, aliás, um dos primeiros grandes exemplos, e prova cabal dada pelo realizador, de que não quer estar no cinema para ele próprio fazer concessões, seja a quem for. Na verdade, raros são os filmes, oriundos de países onde se anda constantemente a bater no peito pelos valores democráticos, capazes de apresentar uma denúncia inequívoca e frontal do que está mal, mesmo muito mal, na sociedade contemporânea. Que filmes como a LEI DE TEERÃO e OS IRMÃOS DE LEILA sejam produzidos no Irão diz bem do valor destes homens e mulheres, profissionais que não se acobardam, que não andam a surfar a mera espuma dos dias na futilidade institucionalizada do decadente dolce far niente. São cidadãos que, dia após dia e ano após ano, levantam a voz sem demagogias rafeiras a favor de uma sociedade nova, realmente nova e livre. Na verdade, não são quarenta moedas de ouro que pagam a sua passagem pelo cinema nem pelo mundo de sombras que desejam derrubar para erguer um outro mais solidário e justo para si e para os seus mais próximos. Não há preço que possa pagar os riscos que correm senão a nossa sistemática solidariedade e apoio.

Lê Também:   A Vida de uma Mulher, em análise
Os Irmãos de Leila
©Medeia Filmes

Mas vamos aos pontos fulcrais da narrativa que Saeed Roustayi nos propõe em LEILA E OS SEUS IRMÃOS. Primeiro, debrucemo-nos sobre Leila (uma excelente interpretação da conhecida actriz Taraneh Alidoosti). Por contraste com os seus irmãos, Leila mantém um emprego relativamente estável numa moderna e grande empresa comercial de Teerão. Na prática, ela será a única capaz, com o seu salário regular, de manter a família num patamar mínimo de sobrevivência, sem grandes sobressaltos ou humilhações de carácter social. Por isso ela ganha algum ascendente sobre os irmãos, mas igualmente sobre os progenitores, mesmo quando respeita a hierarquia paterna no quadro de uma cultura que já antes da revolução islâmica privilegiava o papel do homem e dos mais velhos. Ou seja, a mesma cultura que leva o indolente e incompetente pai a sonhar com o papel de patriarca, por ser o mais velho, não obstante ser o mais segregado e ostensivamente afastado das grandes decisões pelos representantes do seu singularíssimo e corrupto ramo familiar. Dos irmãos de Leila, o mais próximo dela, Alireza (magnífico Navid Mohammadzadeh), acaba de ser dispensado da fábrica onde ganhava o pão de cada dia como simples operário, um dos muitos que fugiram aos protestos desencadeados pelos colegas que de forma violenta se batiam contra a polícia de choque, reivindicando os ordenados em atraso. Dirá ele a certa altura, demonstrando que a sua consciência pertence a alguém que não assume as responsabilidades, que hesita permanentemente: “Fui dispensado e não despedido”. Nesta forma quase singela de se iludir, na sequência de uma discussão mais azeda a propósito da sua condição de desempregado, fica bem clara a personalidade que o realizador queria imprimir a esta personagem, por contraponto ao modo de ser e estar de Leila, a mulher decidida, que até pode conciliar mas não enterra a cabeça na areia como na metáfora da avestruz. Outro dos irmãos, o obeso Parviz (Farhad Aslani), ganha a vida a limpar as casas de banho do mesmo centro comercial onde Leila está empregada, algo difícil de encaixar até nos padrões modestos da sua família. O que ganha não dá para nada, mas mesmo assim continua a ampliar a sua numerosa prole na esperança de ser pai de um rapaz, dando corpo, mas pouca alma, ao sempre eterno preconceito do papel do macho no vértice da estrutura social. O mais novo dos irmãos, Farhad (Mohammad Ali Mohammadi), sabe mais sobre luta livre americana do que sobre o modo de se fazer valer num mercado pouco generoso no que diz respeito a oportunidades laborais. Representa o alienado, que ou nada sabe ou não quer saber sobre o que se passa ao seu redor. De certa maneira perdeu a esperança de vir a ser alguém e de sair da mediocridade da sua existência, mas nada faz para a recuperar. No entanto, possui um passaporte, o que indica que há um passado que não revela mas indicia qualquer coisa diversa da sua actual condição. Finalmente, Manouchehr (Payman Maadi) será retratado como o perfeito parasita que vive de expedientes, esquemas manhosos, vigarices assumidas por ele e por outra figura do submundo que se alimenta dos sistemas em pirâmide, neste caso um falso negócio que envolve a venda fraudulenta de automóveis. Este pouco recomendável grupo de filhos de um patriarca com pés de barro, na esperança de subirem na escala social, irá desencadear um vendaval difícil de conter quando procuram avançar para uma solução que lhes permita obter a qualquer preço a sustentabilidade financeira que lhes falta. Para isso, seguindo uma proposta de Leila, procuram comprar um espaço para uma loja no já referido centro de compras para uma classe média abastada, ironicamente previsto para o local das instalações sanitárias onde Parviz cumpre as suas higiénicas funções. Mas estas coisas não se conseguem sem dinheiro, e aqui entra em jogo a briga pela posse das quarenta moedas de ouro que o pai, vigarizado pelo mais sibilino membro da família, quer que ele gaste na faustosa cerimónia de casamento do filho, uma cerimónia digna de um padrinho ao estilo de outras mafias internacionais, estratégia de um homem forte que distribui as cartas do poder em função das suas conveniências. Esta situação irá espoletar o grande momento de ruptura entre Leila e os seus irmãos, que de uma forma cúmplice aceitam que o pai seja catapultado para uma posição absolutamente ridícula e efémera no capítulo do poder patriarcal. Algo que o realizador vai encenar admiravelmente ao longo da sequência do dito casamento e posteriormente na visão desencantada das consequências geradas pela vontade indómita de Leila em contrariar o que lhe parecia ser, e era mesmo, a mais grotesca forma de humilhação do seu pai e da sua dignidade pessoal, assim como da sua família. Este conflito dramático entre uma mulher que não se submete ao poder dos homens, nem ao poder canalha de oportunistas que subiram na vida por métodos infames, nem ao poder fátuo dos que se acomodaram gratificados pelas migalhas da mesa do rei, garante ao filme um estatuto e um perfil de combate que o coloca entre as melhores e mais urgentes obras a descobrir numa altura em que não são poucas as razões para nos levantarmos a favor de uma sociedade, qualquer que seja a geografia, que se olhe ao espelho sem vergonha da imagem que ele reflecte. Na verdade, podemos designar este filme como uma peça da engrenagem revolucionária que luta por uma real mudança de regime no Irão e não só, quando vemos o modo como Saeed Roustayi nos mostra sem rodeios que a pequena-burguesia e a chamada classe média que vimos em acção não representam senão uma face da moeda das alternativas ao futuro de muitos países. Nem sequer são aquelas personagens os que defendem ou criticam o regime onde vivem. Para aquelas pessoas, o regime ideal será sempre o que defenda os seus interesses particulares, seja no seu país seja onde for, a sua religião será sempre a do dinheiro, e o sistema político e económico preferencialmente o que navega nas águas geladas do cálculo egoísta. No fundo, Saeed Roustayi está a dizer-nos que precisamos de uma mudança, sim, mas a acontecer, muito cuidado, não deixem que o eventual vazio de um poder antigo possa ser ocupado por aqueles que não são nem nunca foram flores que se cheirem.

Lê Também:   Johnny Coração de Vidro, em análise

Filme indispensável para quem gosta de cinema e de projectos que nos ajudem a compreender os meandros mais intrincados da natureza humana.

Os Irmãos de Leila, em análise
Os Irmãos de Leila

Movie title: Baradaran-e Leila

Director(s): Saeed Roustayi

Actor(s): ​Taraneh Alidoosti, Saeed Poursamimi, Navid Mohammadzadeh

Genre: Drama, 2022, 165min

  • João Garção Borges - 85
85

Conclusão:

PRÓS: Tudo o que disse e ainda o destaque para a excelência dos valores da produção cinematográfica iraniana que, num perfil de resistência ou num contexto mais artístico e subjectivo, continua a ser uma das melhores, mais activas, mais criativas, mais relevantes e conscientemente jovens cinematografias do mundo.

Ritmo e estrutura de montagem que acompanha de modo incisivo e seguro as circunvoluções de um guião recheado de diálogos de grande impacto. Por vezes chega mesmo a ser difícil acompanhar a sucessão de casos e conflitos gerados pelas contradições desenhadas na estrutura ficcional. Mas nunca por excesso de informação. Na verdade, pouco a pouco, o espectador será levado a partilhar o devir da família de Leila, procurando estabelecer pontes entre as diferentes personagens e o contexto em que se movimentam, processo que ajuda a integrar na nossa percepção quer as fragilidades quer a força relativa que os actores sabem, como poucos, integrar na composição geral das suas personagens.

Recebeu o Prémio FIPRESCI (Federação Internacional da Imprensa Cinematográfica) no Festival de Cannes de 2022.

CONTRA: Nada.

Sending
User Review
5 (1 vote)

Leave a Reply