14º IndieLisboa | Rodnye, em análise

Rodnye reconta os conflitos geopolíticos que sucederam à Revolução Ucraniana de 2014 através de uma inesperada perspetiva familiar, doméstica e muito pessoal.

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No panorama cinematográfico geral, mesmo no que diz respeito a documentários do circuito dos festivais, existe uma marcada tendência em ver e examinar grandes acontecimentos através da perspetiva de figuras ativamente envolvidas no seu desenvolvimento. Raramente percecionamos um evento histórico através das pessoas na sua periferia, através das populações que sofrem as suas consequências mas cujo contributo não é nada de extraordinário ou realmente dramático. Isso não invalida, contudo, que tais realidades sejam infinitamente mais comuns e numerosas que as dos grandes protagonistas da História.

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Veja-se, por exemplo, o caso da recente História ucraniana. A Revolução de 2014, a anexação da Crimeia pela Rússia e subsequente conflito armado entre o exército ucraniano e as forças separatistas apoiadas pelo governo de Vladimir Putin, são assuntos que, na sua esmagadora maioria, têm sido representados no cinema através de retratos ora focados nas zonas de combate ativo ora no centro do conflito em Kiev. Isso não invalida a qualidade dos filmes que, até agora, exploraram estes acontecimentos, mas é inegável quão míopes estas visões são. O realizador Vitaliy Manskiy, propõe-se a contrariar esta tendência com Rodnye. Neste documentário, o cineasta explora as divisões que atualmente assolam a Ucrânia através de uma perspetival intrinsecamente pessoal e familiar, em que a História é algo contado de geração em geração, algo vivido e impregnado na mente de quem se lembra ou muitos contos ouviu do passado e os vai passar à próxima geração.

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Especificamente, Rodnye foi construído através de uma série de filmagens levadas a cabo por Manskiy ao longo de 12 meses entre 2014 e 2015, em que visitou vários membros da sua família espalhados por toda a Ucrânia, incluindo a Crimeia e a região pró-russa da Bacia do Donets. Um dos grandes trunfos desta abordagem é o modo como os acontecimentos políticos e, especialmente, o advento da guerra são vistos através da perspetiva doméstica de uma família cujos laços de sangue se estão lentamente a dissolver. Nada é unidimensional, ou pintado a preto-e-branco moralista, mas isso não impede que o filme seja marcadamente montado de modo a dar mais valor à família ucraniana e pró Europa do realizador, nem que seja pelo modo como são as suas vidas que mais gradualmente são infetadas pela realidade sanguinária da guerra. Essa guerra que faz de um jovem obcecado com jogos por computador na primavera de 2014, um soldado a despedir-se da mãe pelo que é possivelmente a última vez em maio do ano seguinte.

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Tal afiliação de simpatias e ideologias pró Europa e pró-Ucrânia não é algo garantido desde o início. Aliás, Manskiy, em 2014, tinha nacionalidade russa e vivia em Moscovo. Ele mesmo nos revela que, durante a dissolução da União Soviética nos anos 90, estava a viver e trabalhar na Rússia, pelo que a sua escolha de identidade nacional foi um fruto do acaso e do pragmatismo e não a manifestação de nenhum tipo de reflexão pessoal. É claro que, com a feitura desta obra, tais reflexões acabaram por surgir. Afinal, o que é que define uma identidade nacional? Será etnia? Se for assim, ninguém nesta família é ucraniano, sendo todos eles descendentes de russos ou polacos lituanos. Será a língua? Uma mera questão de geografia, talvez? Ou uma herança cultural?

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Na sua primeira visita à mãe idosa, o realizador muito lhe pergunta sobre o assunto e, tal como ele fez no passado, a senhora apenas lhe consegue dar respostas secas, pragmáticas e em que a identificação oficial dos documentos dos seus antepassados transformou-os em ucranianos. Afinal, se eles vivem na Ucrânia, são ucranianos. Pelo menos é essa a perspetiva da família de Manskiy a viver na parte ocidental do país, onde questões de etnia parecem ter sido há muito esquecidas. O mesmo não acontece com os seus familiares pró-russos, cujo apego à ideologia soviética os veio a separar do resto da família. Um avô já muito envelhecido fala, por exemplo, de histórias sobre a carnificina dos independentistas antissoviéticos nos anos 40. Para ele, os russos sempre fizeram mais para ajudar o seu povo do que os ucranianos para ajudar os ucranianos e por isso, ele ainda olha com orgulho e devoção para imagens glorificantes de Estaline.

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Propaganda ancestral, as cicatrizes de uma nação criada a ferro e fogo pelo desmembramento da União Soviética e a falta de empatia são as causas da doença que tem tido como principal sintoma a fragmentação desta família. Até irmãs que cresceram juntas se veem uma à outra como um “outro” hostil. É essa a ideia central ao momento mais alto e doloroso de Rodnye, quando o realizador visita uma tia que vive na Crimeia e testemunha uma chamada por Skype em que ela discute com os seus familiares ucranianos sobre um post do facebook, acabando por aceitar que é impossível falar com os “outros”. Ao mesmo tempo que isto acontece, a elegante montagem corta para uma foto que repetidamente vemos ao longo do filme em várias casas. Na imagem, as várias irmãs são ainda crianças, sorridentes e unidas. Na banda-sonora, contudo, a discussão continua a ressoar, tornando a foto inocente num testemunho irónico, quase cruel, da desunião atual.

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É fácil entender o valor de Rodnye enquanto um documentário de investigação com teor político, mas o seu verdadeiro poder está no lado emocional, no modo como, no final, esta é uma tragédia familiar. Trata-se de uma tragédia que é somente uma gota num oceano de muitas outras histórias desesperantes na Ucrânia contemporânea, uma tragédia que é mais trágica simplesmente por ser algo tão banal, tão familiar e tão pequena no grande panorama da História. Ao direcionar a sua análise para o íntimo da sua própria vida e dos seus entes queridos, Vitaliy Manskiy conseguiu assim oferecer-nos uma perspetiva vital e importante sobre acontecimentos que muitos estrangeiros fora da Ucrânia ainda ignoram. Pela sua parte, a filmagem de Rodnye parece ter afetado fortemente o realizador que, hoje em dia, já não vive na Rússia.

 

Rodnye (Close Relations), em análise
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Movie title: Rodnye

Date published: 4 de May de 2017

Director(s): Vitaliy Manskiy

Genre: Documentário, 2016, 112 min

  • Cláudio Alves - 77
77

CONCLUSÃO

Apesar de retratar uma família fragmentada, Rodnye acaba por ser uma preciosa celebração humanista da complexidade individual que tanto une como separa os vários intervenientes do filme e transcende as barreiras geopolíticas dos acontecimentos perifericamente retratados. Para quem se interessa pelo que tem vindo a acontecer na Ucrânia desde a revolução de 2014, esta é uma obra essencial.

O MELHOR: A perspetiva familiar e o crescente envolvimento da guerra nas vidas banais, que se regista em algo tão superficial como a presença progressiva de soldados nas ruas e em mudanças pessoais mais cataclísmicas como o serviço militar obrigatório que ameaça abater-se sobre os membros mais jovens da família.

O PIOR: Uma visita ao palácio de Yanukovych que, apesar de evidenciar uma boa dose de humor negro, tende a roubar momentaneamente o foco à família central e assim destabiliza a coerência tonal e concetual de Rodnye.

CA

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