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Na Penumbra, em análise

Terratreme Filmes apresenta “Na Penumbra”, uma obra de Sharunas Bartas em destaque no nosso país.

MORRER POR UMA TERRA DEVASTADA

Na Penumbra
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Fiel ao seu estilo, uma autêntica imagem de marca da sua ideia e das suas propostas de cinema, o lituano Sharunas Barta (nascido no ano de 1964 em Siauliai, na altura uma república soviética da URSS) reservou para SUTEMOSE (NA PENUMBRA), 2020, uma abordagem imagética e sonora que se pode considerar, face a outras obras anteriores, mais acessível a um espectador que não encontre razões substanciais para calibrar a sua visão pelos ritmos e atmosferas habitualmente defendidos pelo cineasta. Mesmo assim, será necessário dizer que nesta narrativa situada na encruzilhada do final da Segunda Guerra Mundial e os sinais mais sólidos dessa outra a que deram o nome de Guerra Fria, aquilo que mais se destaca continua a ser precisamente o modo como o realizador preenche cada plano, imagens compostas como se fossem quadros de luz e sombras, muitas vezes fotografados no limite do visível, uma espécie de chiaroscuro cinematográfico que acreditamos ser inspirado na pintura renascentista do Século XV. Planos e sequências onde os contrastes da iluminação exigem sempre um cuidado suplementar ao Director de Fotografia, ao operador, ao Director Artístico, aos diferentes aspectos do desenho de produção e, naturalmente, aos actores que Sharunas Barta dirige como figuras exemplares no contexto de um espaço fílmico que se quer emblemático, como se quisesse encenar uma série de ícones modernos destinados a serem venerados plenamente pelos espectadores num grande ecrã. Sim, nada de ver este filme num pequeno ecrã nem numa sala inundada por qualquer claridade natural ou artificial. Este e os outros filmes do cineasta são obras para se desfrutarem no “claro-escuro” do cinema.

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Dito isto, vamos ao filme e aos seus pressupostos dramáticos. Estamos em 1948. Nós, portugueses, estamos relativamente mal-habituados quanto ao modo como percepcionamos a unidade e integridade geográfica do nosso país. De facto, com uma ou outra excepção (como a sempre eterna questíuncula nacionalista com Olivença), os 92.212 km2 de Portugal já o são, mais quilómetro menos quilómetro, há muitos anos, na verdade há muitos séculos. Mas as coisas não se passaram, nem se passam assim, em muitas regiões da Europa e do mundo. E a área onde hoje se situa a Lituânia sofreu sucessivas convulsões. Só para referir as mais próximas da acção de NA PENUMBRA, recordemos a invasão militar da Alemanha nazi, que deixou o país em ruínas, logo seguida da partilha da Europa por esferas de influência, negociação promovida pelos aliados vencedores, nomeadamente os que se sentaram na Conferência de Yalta, na Crimeia, a saber, Franklin Roosevelt (EUA) Winston Churchill (Reino Unido) e Josef Stalin (URSS). Não foi a única, mas foi a mais decisiva para a definição de uma nova realidade geopolítica e, naturalmente, geoestratégica.

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Na Penumbra
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No início do filme iremos dar conta de uma família que habita um lugar próximo de uma floresta e cujo patriarca, Pliauga (Arvydas Dapsys), parece preocupado com a crescente presença do exército vermelho e com a imposição de medidas práticas vagamente inspiradas na luta de classes, mais insinuadas do que assumidas, ou simplesmente com origem nas necessidades mais comuns da administração soviética, uma vez que a Lituânia ficou submetida a essa esfera de influência. Sharunas Barta não nos diz muito nos primeiros minutos, prefere guardar para depois a revelação de segredos que este homem guarda, quer sobre a sua vida pessoal quer sobre as contradições da sua vida familiar, nomeadamente a relação demasiado próxima e ilegítima com a empregada, ali mesmo nas costas da mulher. Esta fora outrora uma menina burguesa que se submeteu aos avanços de um criado do pai, Pliauga, um bronco, como apelida hoje o marido sem qualquer pudor. De facto, a sua forte personalidade não se resigna completamente ao papel de figura decorativa, sabe o que se passa, possui um olhar acutilante e lúcido apesar da sua impotência para inverter a realidade e, para definir os amores proibidos de patrão e empregada, não hesita em apelidar a criada de rameira, mais uma aventura do homem que ela nitidamente despreza. Pliauga comporta-se como um autocrata, e no campo específico das relações familiares iremos sobretudo dar conta da relação que mantém com um rapaz a quem chama filho, Ute (Marius Povilas Elijas Martynenko), para alguns comentadores e críticos o protagonista, embora aqui eu discorde. Na verdade, há dois protagonistas em NA PENUMBRA, o suposto pai e o filho, sendo o último plano prova cabal desta minha opinião, ou melhor, quase diria uma posição de princípio. O jovem Ute, ao contrário do velho Pliauga, apresenta um rosto andrógino e algo distante da realidade circundante. Parece um anjo da iconografia religiosa. Não parece ser daquele mundo inundado por cores frias. Não nos deixemos enganar pela beleza hipnótica das paisagens, porque aquelas paragens não são o paraíso, são antes um inferno para os que sabem aguentar firmes as adversidades e desafios da vida. Como o comprovam os partisans que se escondem na floresta numa resistência que não parece ser mais do que uma afirmação pessoal, estranhamente desgarrada de um colectivo mais vasto, nacional. O seu acampamento acaba por ser um espaço pelo qual, segundo eles, vale a pena lutar ou morrer, mas não sabemos se há alguma ligação a outras parcelas do movimento. Percebo porque o argumento não desenvolveu mais este “retrato fixo” da resistência, até porque será aqui que as maiores contradições irão explodir, devastando ainda mais o que a partir de certa altura já se adivinhava devastado pela desproporção das forças em presença. Traições entre os partisans ditam o destino dos que não se submeteram nem sucumbiram a outros ideais e, por isso mesmo, o citado último plano do filme não surge do nada, sendo antes a consequência inevitável da falta de coesão ideológica do grupo. Sempre que se vê confrontado com as restantes personagens, homens ou mulheres, Ute irá ser sempre uma figura deslocada mas cuja presença, aqui e além, acaba por fazer alguma diferença. Mas face ao avanço da História ele percebe que os caminhos que se abrem ao futuro não são lineares e possuem, isso sim, muitas curvas e contra-curvas, e o que hoje parece verdade amanhã poderá não ser. Sharunas Barta consegue assim aliar o ensaio cinematográfico ao depoimento filosófico, dando a este seu projecto um valor acrescentado por não ficar apenas, como em obras anteriores, no plano do cinema pelo cinema.

Na Penumbra, em análise

Movie title: Au Crépuscule

Date published: 6 de July de 2022

Director(s): Sharunas Bartas

Actor(s): Alina Zaliukaite-Ramanauskiene, Arvydas Dapsys, Marius Povilas Elijas Martynenko

Genre: Drama, 2019, 128 min

  • João Garção Borges - 60
60

Conclusão:

PRÓS: Magnífica fotografia a cores, uma banda sonora intensa em que prevalecem os sons e os ecos perdidos da Natureza, e uma produção (com participação portuguesa da produtora TERRATREME e financiamento do ICA) onde se demonstra que mais vale um forte selo identificador da nacionalidade do projecto ficcional do que uma obra mais ou menos híbrida resultante da mistura de valores idiossincráticos oriundos dos diversos países coprodutores.

Destaque ainda para os actores, na sua grande maioria comprovando um olhar muito atento de Sharunas Barta em relação ao elenco e aquilo que espera retirar da sua presença, por vezes sem nada dizer. Só e apenas um olhar, um gesto, uma palavra certa no momento certo.

CONTRA: Para alguns será um filme com um ritmo que exige uma generosa dose de disponibilidade por parte do espectador. Não digo que não, e isso para mim não é uma falha. Diria antes que este modo de fazer cinema dá precisamente ao espectador a margem de manobra que muitas vezes precisa para melhor apreciar o processo narrativo proposto.

Não precisa de ser encarado como o melhor ou pior modelo, mas apenas como um modo legítimo, como qualquer outro, de ver e ouvir um filme.

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