Sharon Van Etten, Remind Me Tomorrow | em análise

Em Remind Me Tomorrow, a voz e melodias de Sharon Van Etten emergem num novo contexto instrumental e biográfico, desenhando um retrato vibrante da maturidade.

Mudou muito a mulher que, em Remind Me Tomorrow, promete não mudar nem ir embora. Quando, em outubro, Sharon Van Etten reapareceu sob o olhar público, surpreendeu toda a gente com “Comeback Kid”. As melodias eufóricas, a percussão proeminente e inexorável, a performance vocal impositiva, tudo num ambiente pós-punk de sintetizadores em tom apocalíptico, ofereciam-na transfigurada numa Siouxsie Sioux para o século XXI. Imagem que o vídeo sedimentou. Com a longa cabeleira negra e descomposta a entrever-se por entre luzes de néon, a cantora-compositora permanece de pé, firme, enfrentando a câmara e o mundo, enquanto espectros da vida passada passam por ela, sem a demover ou desviar-lhe o olhar. Os singles seguintes apenas descobriram inflexões distintas desta nova personalidade. Em “Jupiter 4” podemos ouvi-la cantar introspectivamente, mas agora sob o pano de fundo da fria, arrepiante fantasmagoria do Pornography dos Cure. E em “Seventeen”, ao som de um piano sustentado por sintetizadores explosivos e um ritmo motorik, confronta energicamente esse mesmo passado, cheia de agridoce desafio na voz.

REMIND ME TOMORROW | “COMEBACK KID”

Não se trata de reinvenção, estamos longe do Carnaval. A rapariguinha de dezassete anos que lateja na memória de “Seventeen”, olhada com ternura mas sem saudade, existiu realmente como jovem perdida numa relação destrutiva, a percorrer uma Nova Iorque desconhecida, sem ter com quem, nem saber como comunicar a sua insegurança e incerteza – a não ser através da música que foi florescendo em íntimas guitarras e pianos. Essa jovem cresceu. Fugiu da corrosão de um amor doentio, reatou os laços com a família deixada para trás, encontrou alguém com quem quis viver o resto da vida. Quando a música começou a perder a sua qualidade terapêutica para se deformar num negócio de sucesso, retirou-se e entrou na universidade para estudar psicologia, “to become a therapist and do something real”. Mas, como a música não se retira dos seus, voltou a ela por meio da televisão e do cinema. Enquanto compunha a banda sonora de Strange Weather, ia-se fartando da guitarra e entretendo-se com o órgão CX-3 e o sintetizador Jupiter 4 (exacto) do actor Michael Cera, com quem partilhou brevemente um espaço de ensaio. Em casa, divertia-se a tocar a bateria daquele com quem quis viver o tal resto da vida. Ganhou-lhe o gosto, lembrou-se de que gostava de pós-punk e electrónica, de Portishead, Suicide, Nick Cave e Bruce Springsteen, procurou o produtor John Congleton e pôs em cima da mesa as canções que fora compondo enquanto estava em casa a tomar conta do filho que entretanto nascera.

Não houvera nunca o plano de um álbum, mas a vida aconteceu, mudou, fortaleceu-se e dos seus interstícios surgiu a música que soa agora tão diversa. Do novo ponto de vista que ocupa, da confiança conquistada, do alto das escadas, Sharon Van Etten fita a rapariguinha que desapareceu mas habita ainda como memória e identidade em si e como promessa e ameaça no bebé que contempla no berço. Olha para aquela liberdade que vem da falta de rumo e ausência de obrigações e pensa se não passará de sonho, ilusão: “Think you’re so carefree/ But you’re just seventeen”. Vencendo os resquícios de charme que a ideia e lembranças de vagabundagem juvenil possam continuar a ter, a versão presente da mulher corta a direito, descobre o quão “uncomfortably alone” se encontra, no fundo, a sua versão passada e, enchendo-se de compaixão, diz-lhe: “I wish I could show you how much you’ve grown”. “Seventeen” é o tema central de Remind Me Tomorrow e a sua melhor canção. Sintetiza as ideias, que percorrem todo o álbum, de um amor comovido e comprometido, da segurança e posse de si mas também do temor e tremor que vêm com a maturidade e responsabilidade.

REMIND ME TOMORROW | “SEVENTEEN”

Em “Seventeen” culmina a tríade dos singles que reside eufórica no centro do álbum. Antes, temos em “I Told You Everything” um começo que recorda, só para dela se despedir, a Sharon Van Etten de antigamente, seguido de um crescendo onde uma nova mulher dá largas à sua certeza – com o baixo potente e as melodias ascendentes de “No One’s Easy to Love” – e confessa as suas influências – o trip-hop herdado dos Portishead a envolver, em “Memorial Day”, os murmúrios de pavor que se escondem nas fímbrias da segurança. Porque, afinal, esta felicidade é esculpida em débil massa humana. Depois do apogeu, o demorado desenlace que encontra Sharon Van Etten em flutuantes meditações e estados de ânimo. Onde reencontramos, disfarçadas no seio da pesada bateria, do baixo repetitivo, das guitarras insistentes, de portas a ranger e eco por todo o lado, as melodias e performance vocal da mesma Sharon de sempre. É ainda e sempre ela. Só que desta vez não se limita a relatar as venturas e desventuras contingentes e sentimentais do amor. Em tudo vibra agora a pergunta por “the meaning of life”: “I want to make sense of it all.”

A melancolia e alienação já não são, como em Tramp ou Are We There, o fio condutor, porque a sua voz está agora cheia das vozes daqueles que a acompanharam no tempo da crise. Sharon Van Etten relatou à Pitchfork uma entrevista que tivera com a Mimi dos Low, onde descobrira ser possível conciliar a vida familiar com a vida artística. No decorrer da conversa, Mimi dissera uma coisa que lhe soara imensamente verdadeira: “Your family is everyone that surrounds you, everyone that reaches their hands out”. Reverberações desta frase, ouvida num encontro casual mas crucial, chegam-nos em “Hands”: “Put your hands on your lover/ I’ve got my hands out”. Todo o álbum é este ecoar de quatro anos de vida em que a vida se transfigurou. Num lento processo de maturação, sensível na escuta do álbum, as canções que iam brotando, avulsas, da vida que reflectiam iam sendo, também elas, modificadas pela vida que depois se dava. É possível ver versões em guitarra acústica de “Seventeen”, tocadas no início de 2017, e perceber o quanto esta canção cresceu juntamente com a sua autora. “Stay” foi composta tendo em mente aquele a quem Sharon Van Etten prometia e suplicava um para sempre. Mas, ao ouvi-la nos auriculares, pousando o olhar sobre o filho que dormia, percebeu, num “weird time portal”, que a canção era também sobre ele.

“Our love is for real” canta Sharon Van Etten em “Jupiter 4”. A  cantautora que desabafava, juvenil, as suas dores e angústia à guitarra ou ao piano, em voz intensa mas resguardada, cantando a medo os seus medos, desabrochou e descobriu o gozo de tocar e cantar a plenos pulmões. Remind Me Tomorrow vibra com uma energia ora em plena expansão, ora cheia da contenção que vem da consciência do valor do tempo e da acção, ora atravessada pela gravidade que traz a experiência da própria e alheia fragilidade. O corte com o passado e a sua revisita são fruto de uma nova liberdade. A de quem, tendo descoberto o seu lugar no mundo, pode perdoar e acolher a própria história precisamente porque esta, embora o tenha feito crescer, já não o determina. O plangente e meditativo lamento foi substituído por uma urgência palpável em cada verso, em cada linha melódica, em cada escolha de instrumento, dando origem a um álbum que abre e segue por uma nova estrada, cheia de possibilidades a explorar no futuro. Sharon Van Etten encontrou a realidade por que tanto tempo procurou: “I’ve been waiting, waiting, waiting my whole life/ For someone like you/ It’s true that everyone would like to have met/ A love so real”. Não admira que não se importe de esperar até aos cinquenta para acabar psicologia.

REMIND ME TOMORROW | “JUPITER 4”

Sharon Van Etten, Remind Me Tomorrow | em análise
Remindo Me Tomorrow - Sharon Van Etten

Name: Remind Me Tomorrow

Author: Sharon Van Etten

Genre: Indie Rock, Folk Rock, Pós-Punk

Date published: 18 de January de 2019

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  • Maria Pacheco de Amorim - 85
  • Rui Ribeiro - 87
86

Um resumo

Remind Me Tomorrow descobre uma nova Sharon Van Etten, não reiventada mas amadurecida. Se a instrumentação e forma composicional elegidas para exprimir a maturidade encontrada não são propriamente originais, são pelo menos adequadas para comunicar a força e energia que, contrariamente ao que tantas vezes se pensa, caracteriza a fase adulta da vida. Uma mudança de direcção relativamente ao esmerado e enlanguescente indie folk dos registos anteriores, que abre novas possibilidades numa estrada onde não falta espaço para crescer nem talento que o prometa.

Canções incontornáveis: “Memorial Day”, “Seventeen”, “Hands” e “Stay”.

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