“Sibyl” é um genial melodrama de Justine Triet, que competiu com o filme em Cannes antes de agora chegar ao Lisbon & Sintra Film Festival.
No universo do grande ecrã, raro é o psicoterapeuta que se pode orgulhar da sua competência e profissionalismo. Afinal, da pura eficácia raramente se obtém drama decente. Nesse aspeto, a figura titular de “Sibyl” é uma perfeita psicoterapeuta para a narrativa cinematográfica. Drama é o que não falta na sua vida e, quando tudo se acalma, ela própria está pronta a minar as cavernas da memória em busca de algum farrapo de caos que venha desordenar o espírito. Além disso, em termos de profissionalismo, Sibyl é um zero à esquerda, estando sempre pronta a atirar princípios borda fora e mergulhar de cabeça nas escolhas mais amorais imagináveis para alguém da sua profissão. Sibyl é um desastre e, por isso mesmo, observá-la é um deleite.
A narrativa do mais recente filme de Justine Triet começa num ponto de viragem na vida desta protagonista. Sibyl decidiu dedicar-se à escrita depois de anos a fazer carreira enquanto psicoterapeuta. Apesar dos presságios ominosos de um editor, ela não vacila nas suas escolhas e tem todo o apoio que precisa no idílio familiar. O marido charmoso está sempre pronto a apoiá-la, a irmã excêntrica que vive com ela não se importa de tomar conta das filhas de Sibyl enquanto ela se fecha na clausura do artista em trabalho. O único senão neste cenário é uma crónica falta de inspiração que torna a folha em branco num inimigo tão formidável quanto assustador, seu vazio um constante dedo a apontar para as inseguranças da mulher que não o consegue preencher.
Nos píncaros da crise criativa, Sibyl depara-se com uma nova cliente que diz estar em busca de terapia, mas que, na verdade, procura alguém que lhe carregue a responsabilidade de fazer escolhas difíceis. Ela é Margot, uma atriz em início de carreira que engravidou de um colega ator que acontece estar casado com a realizadora do filme em que ambos trabalham. A vida dela é uma autêntica telenovela e Margot não ajuda a situação com o seu constante choro e espirais de dúvida neurótica. Ela é um caco humano e, de repente, é como se uma lâmpada metafórica se acendesse sobre a cabeça de Sibyl. Aí está uma boa história para o seu livro. Só é preciso saber esconder um telemóvel a gravar as conversas entre paciente e terapeuta e saltar por cima de alguns obstáculos éticos pelo caminho.
A premissa narrativa de “Sibyl” é meio estapafúrdica, mas Triet sabe como esticar os limites do drama até chegar ao absurdo e ao transcendente. O emaranhado de más escolhas que unem Sibyl e Margot só se vai complicando com o passar do tempo e, de um dia para o outro, a terapeuta dá por si na ilha de Stromboli a acompanhar as filmagens do projeto que tanto veio desnortear a vida da atriz engravidada. Neste cenário que em tempos foi pisado por Ingrid Bergman, Triet acrescenta mais alguns ingredientes à sua loucura sentimental. Por um lado, temos Igor, o amante de Margot e um especialista em dissimulação. Por outro, há Mika, a realizadora germânica que se tenta equilibrar no precipício da histeria, mas raramente consegue conter as explosões de irritação que a consomem.
Deste improvável quarteto nasce muito caos, mas isso não é suficiente para o engenho cinematográfico de Justine Triet. Tal como tem vindo a mostrar ao longo da sua curta carreira, a cineasta francesa vive para o estudo de personagens femininas difíceis e “Sibyl” não é exceção. Por muito que o enredo possa chamar a atenção, é a interioridade da psicoterapeuta que dá ordem e propósito ao filme. Mesmo quando tudo corre bem, há sempre algo a matutar na cabeça da protagonista, cujas memórias do passado se intrometem no agora e recusam subsumir-se. O fulgor de uma paixão fracassada está sempre a vir à superfície, está sempre a intrometer-se na psique de Sibyl e a fazê-la questionar as suas escolhas. Gabriel, seu antigo amante, é um espectro que tanto seduz como destrói, uma manifestação do desejo rarefeito e do apelo magnético do caos.
Nesse sentido, “Sibyl” assume-se como um melodrama estilhaçado pela intromissão da memória. É a já referida telenovela, se esta fosse partida pelos ecos de um passado que parece sempre mais real que o presente. Tais realidades traduzem-se na estrutura e nos ritmos de montagem do filme, com flashbacks a segmentarem cenas corriqueiras e a interromper o desenrolar do drama principal. Por vezes são diálogos concretos, enquanto noutras ocasiões são só imagens de luxúria. O que isto faz é distabilizar a protagonista e o espectador que a observa, pondo em dúvida os próprios paradigmas da felicidade que todos tentamos alcançar em vida. Será que essa felicidade pode ou deve ser igual para todos?
A ideia de felicidade de um pode ser uma mera construção social para outro. Sibyl, que parece uma mulher de sucesso que conseguiu tudo o que queria na vida, é confrontada com a vacuidade de um idílio que parece ter nascido de ideais sociais ao invés do seu coração. O seu marido é perfeito, mas a perfeição não a excita. O seu trabalho como terapeuta era sólido e importante, mas há algo na precariedade da aventura literária que chama por ela. Mesmo quando tudo parece correr bem, ela precisa de incluir Margot na sua vida qual alcoólica a engolir um copo de champanhe com um só golo. A partir da forma e da estrutura, Triet assim redefine o melodrama sem estribeiras à imagem do retrato contraditório sobre uma mulher que parece ser alérgica a estabilidade e se está sempre a deixar levar por impulsos autodestrutivos que ela mesma não consegue racionalizar.
O que faz todo este complicado engenho funcionar é, como já dissemos, a astúcia formalista de Triet. Contudo, muito crédito há que ser dado aos atores, eles que tão habilmente dominam registos tonais que vão desde o melodrama mais choroso à farsa mais gritada. O trio de mulheres no centro da trama é de particular espetacularidade. Virginie Efira consegue, de algum modo, impor ordem na tempestade de incongruências comportamentais de Sibyl. Por seu lado, Adèle Exarchopoulos dá vida a Margot em toda a sua glória caprichosa e birrenta. Apesar da sua aparente vulnerabilidade emocional, a atriz real faz da atriz fictícia uma mulher que sabe ter a capacidade para ser um formidável objeto de manipulação dissimulada pela lágrima e o tremer de um lábio carnudo. Por fim, Sandra Hüller é um pingo de pura comédia neste cocktail bombástico, fazendo de Mika uma figura que simultaneamente consegue ser uma harpia de histerismo descontrolado e a única ilha de sanidade neste mar de folia.
Sibyl, em análise
Movie title: Sibyl
Date published: 24 de November de 2019
Director(s): Justine Triet
Actor(s): Virginie Efira, Adèle Exarchopoulos, Sandra Hüller, Gaspard Ulliel, Niels Schneider, Paul Hamy, Laure Calamy, Arthur Harari, Adrien Bellemare
Genre: Comédia, Drama, 2019, 100 min
Cláudio Alves - 80
Rui Ribeiro - 83
82
CONCLUSÃO:
“Sibyl” é um melodrama desconstruído e exaltado pelo engenho formal e estruturalista de Justine Triet. A realizadora e um elenco à altura, dão vida a um estudo de personagem que faz rir e chorar, que encontra absurdo na tragédia e depressão no idílio de um final feliz.
O MELHOR: A plasticidade tonal que a montagem proporciona.
O PIOR: Chegado o final, parece que o argumento não sabe bem como resolver os problemas de “Sibyl” ou dar conclusão aos vários fios da narrativa dispersa.
Licenciado em Teatro, ramo Design de Cena, pela Escola Superior de Teatro e Cinema. Ocasional figurinista, apaixonado por escrita e desenho. Um cinéfilo devoto que participou no Young Critics Workshop do Festival de Cinema de Gante em 2016. Já teve textos publicados também no blogue da FILMIN e na publicação belga Photogénie.