"Skate Kitchen" | © Pulse Films

Queer Lisboa ’19 | Skate Kitchen, em análise

Skate Kitchen”, realizado por Crystal Moselle, foi o filme de encerramento do Queer Lisboa 23, dando fim ao festival com skateboards, irmandade e uma carta de amor a Nova Iorque.

O filme de encerramento de um festival tem sempre alguma responsabilidade acrescida. Normalmente, a obra só se exibe a seguir à entrega dos prémios e serve quase como uma espécie de sobremesa ligeira depois da refeição feita pelas secções principais da programação. O filme tem de rematar as festividades que encerra e acaba sempre por ecoar temas, imagens e ideias vigentes no que veio antes, mesmo que isso não tenha sido a intenção dos seus autores. Selecionar tal obra não deve ser tarefa fácil, mesmo descartando as negociações com distribuidoras e promotoras ávidas por dar destaque aos seus produtos cinematográficos.

Com tudo isto em conta, temos de dizer que “Skate Kitchen” é uma soberba coda para dar fim à sinfonia do Queer Lisboa 23. Foi uma estupenda sobremesa, um epílogo apto e tantas outras metáforas laboriosas. As suas imagens finais são uma particular maravilha, mas, antes de nos debruçarmos sobre elas, convém contextualizar um pouco mais o leitor. “Skate Kitchen” centra-se na vida de uma jovem de dezoito anos, Camille. Ela vive com sozinha com a mãe, uma imigrante colombiana que não compreende a filha, especialmente a fixação da jovem no desporto do skateboarding. Pouco depois do filme começar, com Camille a ferir-se depois de uma acrobacia mal feita, a matriarca proíbe-a de voltar a andar de skate.

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© Pulse Films

Rebelde e sem outra paixão para lhe ocupar os dias, Camille depressa se escapule aos limites estabelecidos pela força materna e encontra novo lar numa comunidade que a aceita e celebra. Por meio de interações no Instagram e pesquisas no Google Maps, a jovem latina trava amizade com um grupo de skaters exclusivamente feminino. Elas autointitulam-se como “Skate Kitchen” e depressa se tornam mais próximas de Camille que a própria mãe. Como sempre acontece, estes segredos e mentiras rapidamente são revelados pelos acasos da vida e, depois de umas quantas disputas acesas, a protagonista vai viver para casa de uma das suas novas amigas.

As outras raparigas oferecem o conforto da irmandade, mas também representam um estímulo para que Camille confronte partes de si mesma até aí desconhecidas. Entre tardes passadas em cima dos skates ou nos quartos umas das outras, estas jovens falam da sua sexualidade com admirável franqueza, discutem desejos e formas de vida, questionam aqueles que as atraem e partilham tudo umas com as outras. Há algo de idílico nestas passagens mais casuais do filme, uma qualidade que nasce do seu conteúdo narrativo e também do modo como a realizadora Crystal Moselle filma as suas atrizes. É fácil entender o fascínio de Camille e a ligação emocional que ela sente com suas amigas.

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 “Skate Kitchen” representa a primeira longa-metragem narrativa de uma realizadora acostumada a documentários e, de facto, a linguagem formal do projeto vai buscar muito ao género documental. Não se trata somente de uma pátina de realismo, há que se entender. A banda-sonora, por exemplo, está cheia de som sobreposto, falas perdidas entre ruídos da rua, a atmosfera urbana a impor-se sempre sobre o indivíduo. A encenação dos atores também remete para a documentação de comportamento e do quotidiano, sendo que há uma componente meio caótica no modo como corpos se dispõem no ecrã ou se destacam durante uma conversa. Sentimos que estamos a ver algo real, uma vivência orgânica que não foi maculada pelo artifício da dramaturgia.

O trabalho de Moselle com o seu elenco é de particular interesse. Acontece que muitos dos atores estão a interpretar variações de si mesmos, reflexos fictícios de personas do dia-a-dia. Camille, por exemplo, é interpretada por uma verdadeira skater que, tal como a personagem, ganhou fama nas redes sociais. Rachelle Vinberg é o seu nome e há, na sua performance, aquela qualidade inefável de alguém que consegue transmitir a ideia que está simplesmente a existir em frente à câmara e não a atuar para ela. Traços de amadorismo mostram a cara aqui e ali, mas o que fica e perdura na mente do espectador é uma grande autenticidade humana. “Skate Kitchen” segue a estrutura mais ou menos comum de um bildungsroman cinemático, mas também poderia ser facilmente categorizado como um objeto antropológico.

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© Pulse Films

Por outras palavras, a dinâmica entre as amigas parece real, em parte porque elas são amigas fora de cena, e envolve-nos nessa mesma realidade sem precisar de atiçar em demasia os conflitos da narrativa. Quando estes se manifestam, são tão mais poderosos pela sua cáustica autenticidade. Amigas que se zangam por causas patetas e casais que se rompem sem nunca realmente terem começado, amizades platónicas manchadas por tensão sexual – tudo isso são realidades familiares à maioria de nós. Não é que “Skate Kitchen” seja universal. No entanto, a sua especificidade, pessoal e cultural, dá a todo o filme a aparência de ser um exercício em voyeurismo ou um artefacto criado pelas próprias personagens para se retratarem.

É essa mesma maravilha, essa continuação da intencionalidade das personagens na própria construção do filme que torna o seu final tão forte. “Skate Kitchen” brilha mais quando se rende aos prazeres das suas personagens. Quando a câmara voa com elas pelas ruas de Nova Iorque e flutua ao longo de ruas que reluzem com os faróis de carros engarrafados. Por muito conflito que possa haver, “Skate Kitchen” nunca perde a vista do que une estas mulheres, estas jovens, suas paixões conjuntas e o elo que vincularam quando pela primeira vez se divertiram com os skates. A irmandade que ajuda quando tudo parece negro, que constrói uma nova prancha em comunidade, que dá abrigo e dá amor, que voa pelas ruas durante o crepúsculo e se ri em conjunto, isso é o que sobressai neste final, nesta coda, nesta sobremesa. Que melhor forma de terminar o Queer Lisboa que com este sonho de comunidade e amizade, com esta promessa de união, mesmo depois do flagelo da discórdia?

Skate Kitchen, em análise
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Movie title: Skate Kitchen

Date published: 29 de September de 2019

Director(s): Crystal Moselle

Actor(s): Rachelle Vinberg, Elizabeth Rodriguez, Jaden Smith, Ajani Russell, Nina Moran, Ardelia Lovelace, Jules Lorenzo, Brenn Lorenzo, Kabrina Adams, Taylor Gray

Genre: Drama, 2018, 106 min

  • Cláudio Alves - 80
80

CONCLUSÃO:

“Skate Kitchen” é uma primeira aventura de uma documentarista no mundo da ficção cinematográfica. Vendo os resultados desta proeza, diremos que mal podemos esperar pelo próximo filme de Crustal Moselle. Oxalá ela consiga manter a qualidade humana e autêntica, respeitosa e leve deste filme.

O MELHOR: Os momentos finais e seu êxtase de cumplicidade juvenil, o humor específico e os ritmos de conversas casuais e tardes passadas entre amigos chegados.

O PIOR: Atores amadores trazem grande autenticidade ao filme, mas nem sempre escondem bem o seu amadorismo. O contraste entre as pessoas menos experientes e aquelas com já algum trabalho como atores profissionais é notória. Basta vermos os momentos entre Vinberg e Jaden Smith.

CA

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