14º IndieLisboa | Somniloquies, em análise

Somniloquies é um dos filmes mais estranhos e experimentais do 14º IndieLisboa, mas não é por isso um dos seus mais fantásticos projetos.

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No passado, a dupla de realizadores Lucien Castaing-Taylor e Verena Paravel trouxeram às audiências do IndieLisboa um dos mais espetaculares e idiossincráticos documentários da última década de cinema. O incontornável e fascinante mergulho num pesadelo sensorial de morte, escuridão e violência marítima de Leviathan acabou por lhe valer o prémio máximo do júri nessa edição do festival, mas também garantiu aos cineastas um lugar no panteão dos grandes documentaristas do cinema contemporâneo. As suas experiências foram parte do Laboratório de Etnografia Sensorial da Universidade de Harvard, de onde têm surgido alguns dos filmes documentais mais avant-garde dos últimos anos e onde cada projeto parece ter como principal objetivo a completa imersão do espetador na hipnótica experiência que é testemunhar o evento cinematográfico.

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Somniloquies é a última façanha da dupla e trá-los de volta ao IndieLisboa, se bem que, desta vez, as complexidades da vida num barco de pesca e toda a diáspora de vida marítima e aérea em seu redor foram trocados por uma premissa e abordagem de sintética simplicidade. Diríamos mesmo que a simplicidade é a maior mais-valia assim como o maior problema do filme que, de forma muito sumária, é uma justaposição dos monólogos sonhados de Dion McGregor, um músico que nos anos 60 e 70 foi estudado como a pessoa que mais falava a dormir de que há registo, com imagens concebidas pelos realizadores.

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A escolha dos excertos dos solilóquios sonambúlicos de McGregor revela uma comédia de perversa negrura reminiscente de David Lynch no seu mais psicótico nível de loucura surreal, com violência sexual a manifestar-se em todas as esquinas e automutilação educativa a traçar o caminho para uma acidental autodestruição numa sala de aula. Poderíamos mesmo afirmar que, não obstante o modo como tais descrições de sonhos proporcionam uma visão fascinante de como as ansiedades do dia-a-dia e experiências banais podem ser subvertidas e explodidas em loucura por uma mente em repouso, o filme acaba por valer mais como uma comédia negra e imersiva do que como um pseudo estudo psiquiátrico sobre os recantos mais escondidos da mente humana.

É claro que isso é somente o conteúdo verbal do filme. Em termos puramente sónicos, Somniloquies apresenta uma sonoplastia que parece ter sido feita para posicionar o espetador no limiar entre a consciência e o sonho lúcido. Uma banda-sonora etérea sugere uma paisagem sónica indefinida, como os sons de um organismo interno, e a manipulação dos sons das gravações originais, traz aos ouvidos do espetador os ecos exagerados de uma Nova Iorque do passado, um suspiro espectral de um ambiente urbano perdido nas águas do tempo, tal como os efémeros devaneios sonhados do próprio McGregor.

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De um ponto de vista visual é que Castaing-Taylor e Paravel demonstram a sua idiossincrática visão do cinema documental como palco para espetáculos de soporífera abstração. Basicamente, toda a duração de Somniloquies com exceção das informações textuais que contextualizam o caso de McGregor, é ocupada por filmagens de corpos nus a flutuar num espaço negro. Os corpos em si, são banhados por um esquema de luz contrastante que lhes confere uma confortável luminosidade quente, dando quase a impressão que estamos a observar adultos a flutuar nos ventres de suas mães. Não que os seus corpos sejam particularmente fáceis de discernir, sendo que a dupla de cineastas os filmou em claustrofóbico pormenor, com movimentos de câmara serpenteantes e constante desfoque que torna a dobra da pele no pescoço de um homem praticamente indistinguível do traseiro de uma jovem sonolenta.

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Tal associação de som, conteúdo verbal e imagem proporcionam uma experiência efetivamente hipnótica, depositando a audiência num estado de transe que seria impossível de atingir se o filme estivesse, por exemplo, exposto numa galeria enquanto peça de video art. No entanto, a simplicidade do filme é tanta que, não obstante a sua componente visual, talvez o efeito de imersão sensorial nos mundos imaginados de McGregor fosse ainda mais intensa se o espetador simplesmente estivesse deitado numa cama confortável, às escuras, e a ouvir os somnilóquios em questão. Na sua forma final e apesar de todas as suas mais-valias e mostras de inspiradora experimentação cinematográfica, Somniloquies parece um filme cuja apresentação cinematográfica parece não só ser supérflua como ativamente contraditória das intenções manifestas dos seus criadores.

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Somniloquies, em análise
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Movie title: Somniloquies

Date published: 12 de May de 2017

Director(s): Lucien Castaing-Taylor, Verena Paravel

Genre: Documentário, 2017, 73 min

  • Claudio Alves - 60
60

CONCLUSÃO

Somniloquies é uma hipnótica obra de cinema sensorial e hipnótico que, não obstante as suas significativas qualidades, nunca deixa de dar a impressão de ser uma experiência fracassada.

O MELHOR: O transe em que o filme coloca a sua sonolenta audiência e o humor surrealista contido nos somnilóquios em questão.

O PIOR: A já mencionada contradição entre as intensões de imersão sensorial dos dois cineastas e o modo como a apresentação cinematográfica em si, parece limitar essa mesma qualidade do projeto.

CA

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