SSIFF72 | “Soy Nevenka”: Um caso de MeToo# à espanhola
A realizadora e actriz Icíar Bollaín, apresentou há pouco, o primeiro filme espanhol em Competição: em “Soy Nevenka” reconstrói com a sua habitual sensibilidade, uma narrativa que oscila entre o drama social, suspense e o filme de denúncia, de um dos mais mediatizados casos de assédio sexual no trabalho em Espanha, no início do século XXI.
“Emmanuele”, de Audrey Diwan mostrou-nos como pode ser visto, pelo lado feminino, o erotismo no cinema, na era pós-MeToo#. A actriz e realizadora espanhola Icíar Bollaín estreou há pouco este “Soy Nevenka”, um filme bastante forte sobre um caso de assédio sexual, no início do século XX e mais uma das suas obras, baseadas em fatos reais, novamente com nome de mulher e interpretado por um dos seus actores favoritos: o bilbaíno Urko Olazabal — que aliás ganhou um Goya pelo seu filme anterior (“Maixabel”) — e também pela jovem catalã Mireia Oriol [vimo-la no filme de terror “O Pacto” (2018) de David Victori)]. De facto o cinema espanhol continua a olhar para o seu país, contando excelentes histórias universais, como foi este caso de assédio sexual no mundo do trabalho e da política, um dos mais falados na Espanha antes da era do MeToo#. Com a cumplicidade da co-argumentista Isa Campo (que já colaborou em “Maixabel”) e inspirada no livro “Hay algo que no es como me dicen”, do jornalista Juan José Millás, a realizadora Icíar Bollaín transformou este conhecido caso Nevenka (do qual há também uma série documental de 2021, intitulada “Nevenka – Quebrando o Silêncio”, realizada por Maribel Sánchez-Maroto, disponível na Netflix), numa excelente longa-metragem que combina elementos de suspense, terror psicológico e drama familiar e social, sobre a primeira espanhola que levou a tribunal um político por assédio sexual.
Assim, em “Soy Nevenka”, o consagrado Urko Olazabal interpreta maravilhosamente e com todos os tiques, o carismático e popular autarca de província Ismael Álvarez — parece que já vimos este personagem em qualquer lado — um político experiente, alcaide da cidade leonesa de Ponferrada, em tempos um orgulho para José Maria Aznar, então líder do PP espanhol. Álvarez já tinha fama de mulherengo e ao ficar viúvo começa a seduzir sua jovem vereadora: a recém-formada economista Nevenka Fernández (Mireia Oriol), que surpreendentemente promoveu, dando-lhe a enorme responsabilidade de gerir, apesar da sua pouca experiência, a área do Comércio e Finanças do município. Apesar das iniciais recusas da jovem, Álvarez inicia um persistente, manipulador e violento assédio que começa primeiro com uma relação forçada mas consentida, depois rejeitada pela rapariga e por fim acabará, não sem escândalo e reações na cidade e na sociedade espanhola, no tribunal.
O filme de uma realização irrepreensível, aliás como os anteriores de Icíar Bollaín, acompanha a protagonista Nevenka com a câmara por perto, em todos os seus momentos difíceis, procurando empatia para com esta vítima de uma situação stressante, paralisante e insana, que a oprimiu e causou tantos danos. Nevenka ficou praticamente sozinha perante um risco, que a sociedade envolvente e até a própria família, não se quiz envolver. Pelo contrário, até saiu na defesa do autarca. Contudo, “Soy Nevenka” é um filme que apela, com enorme respeito e sensibilidade à enorme tensão dramática criada entre os dois protagonistas, mas sobretudo defende a dignidade da jovem vereadora, contra o poder do autarca, que começa logo no título e com isso faz como que um levantar de voz, como em outros filmes recentes, contra o abuso, assédio e a violência sexista, que, infelizmente, continuam a fazer noticias nos media.
Com este “Soy Nevenka”, Bollaín regressa também ao tema da violência de género, que já abordou em “Te dio mis ojos” (2003), um filme que lhe valeu sete prémios Goya. Se antes o fez abordando a esfera da intimidade familiar e do lar e no domínio da ficção, agora toca no mesmo assunto mas na esfera pública, a partir de um caso de denúncia pioneiro em Espanha: a verdadeira Nevenka, que vive agora em Dublin, na Irlanda, ousou em 2000, quando tinha apenas 25 anos de idade, sujeitar-se às opiniões mais conservadoras e trazer para a praça pública, diante dos microfones e das câmeras dos media — que aliás começaram por julgá-la de uma forma injusta e selvagem — algo que no início do século XXI foi o germinar do MeToo#, um movimento global contra a violência, assédio, abuso sexual e masculinidade tóxica.
JVM