Superman – Análise
Depois de muita especulação, o “Superman” ou “Super-Homem” de James Gunn vem transformar a imagem da DC Comics no grande ecrã. David Corenswet é o novo homem de aço, Rachel Brosnahan a sua Lois Lane e Nicholas Hoult arrasa como o Lex Luthor mais mesquinho e cruel que o cinema já viu.
Foi em junho de 1938, no crepúsculo da Grande Depressão, que Jerry Siegel e Joel Shuster publicaram a primeira aventura do Super-Homem, incluída na Action Comics. Esse herói de origens alienígenas que vinha salvar a Humanidade com os seus superpoderes derivados do nosso Sol depressa se tornou num ícone e não demorou muito a saltar das revistas de quadradinhos para outras plataformas, outros meios de comunicação e entretenimento. Menos de dois anos após a sua génese, já o filho pródigo do planeta Krypton aparecia em dramatizações para a rádio. Com a entrada dos EUA na 2ª Guerra Mundial, deu-se mais um salto, desta vez para o grande ecrã.
Os Fleischer Studios foram os pioneiros na concretização da personagem em idiomas cinematográficos, consolidando a sua imagem e popularidade numa série de curtas de animação, estreadas entre 1941 e 1943. Depois veio um seriado daqueles que já não se fazem, já com atores de carne e osso para uma América do pós-guerra. Essa produção de aventuras interligadas ao longo de uma narrativa com cerca de três horas seria a última vez que o Super-Homem agraciaria as telas de cinema por muitos anos. A sua nova casa seria a televisão e só em 1978 é que Christopher Reeve vestiria a fatiota azul e escarlate, regressando o herói à sétima arte para a sua primeira longa-metragem.
Esse filme realizado por Richard Donner é um marco histórico, tendo provado a viabilidade do cinema de super-heróis durante a emergência do blockbuster enquanto conceito. Ainda para mais, trata-se de uma produção majestosa, ideal paradigmático do subgénero que ofuscaria muitos dos esforços que vieram no seu seguimento. De facto, nenhuma das suas três sequelas lhe chega aos calcanhares e as reinvenções de Bryan Singer e Zack Snyder muito menos. Mas agora, chega aos cinemas um novo Super-Homem que pode fazer frente à perfeição de Reeve, Donner e companhia. “Superman” de James Gunn é uma redenção tanto quanto é uma reinvenção.
Em certa medida, o novo cabecilha da DC Comics no cinema manifesta-se em oposição às diretrizes do filme de super-heróis moderno. É que, em 2005, quando Christopher Nolan mostrou ao mundo um Batman influenciado pelo noir num registo pseudorrealista, a ideia popular do que estes ícones dos livros de quadradinhos seriam no grande ecrã sofreu uma metamorfose radical. A inocência da banda desenhada e a presunção de um público maioritariamente juvenil deram lugar à procura por algo mais ostensivamente adulto, obscuro. Algo essencialmente reconhecível como uma realidade próxima da nossa.
Gunn regressa à simplicidade de outros tempos.
Podemos imaginar o “Cavaleiro das Trevas” a desenrolar-se na nossa Nova Iorque ou em Chicago de um modo meio inédito para a época. Fora os Expressionismos de Burton ou o apelo do “Super-Homem” de ’78 à Era de Prata da DC e suas infantilidades. Ainda vivemos no mundo que Nolan inventou com “Batman – O Início” e que o grande projeto do Marvel Cinematic Universe veio adaptar a um registo mais leviano sem, no entanto, perder os ditames estéticos e narrativos que as audiências do século XXI tanto gostaram. Só que tudo o que é a mais enjoa e, vinte anos depois desse sucesso das bilheteiras, já o coração deseja por uma mudança, quiçá um regresso à ideia destes heróis como escuteiros voadores mais do que figuras míticas, quase crísticas.
O “Superman” que agora voa para cinemas mundo fora é um corretivo necessário numa série de sentidos. Em primeiro lugar, Gunn e companhia atiram-nos para o meio da história in media res, sem preocupações com a origem do herói. Todos conhecemos a história de como o Super-Homem foi enviado pelos pais à Terra durante a calamidade que destruiu o seu planeta natal. Todos sabemos como o bebé aterrou no Kansas, foi criado como Clark Kent por dois agricultores e, em adulto, foi para a grande cidade de Metrópolis. Lá, arranjou trabalho como jornalista no Daily Planet, apaixonou-se pela repórter Lois Lane, e assumiu a identidade de Super-Homem para empregar os seus poderes alienígenas em benefício da Humanidade.
Tudo isto é subentendido nesta nova aventura que começa com o nosso herói a sofrer a primeira derrota da sua carreira enquanto justiceiro. Sem querer revelar muitos pormenores da história, fica a ideia de um conflito geopolítico em que o Super-Homem interveio, decidido a parar a invasão de um país no meio do deserto por um vizinho hipermilitarizado que acontece ser um aliado de longa data dos EUA. Muito se falará sobre os paralelos cruzados entre o que Gunn aqui desenha e os presentes conflitos Rússia-Ucrânia e Israel-Palestina, mas é importante reforçar que este filme não é uma exploração complexa desses temas.
Estará mais próximo das lições morais que os desenhos animados que costumavam passar de manhã na TV tentavam transmitir ao público mais novo. Todo o “Superman” se assemelha a esses cartoons em espírito, contrariando as expectativas comerciais que ditam que este tipo de filme há que ser sério e cínico e tão calibrado para graúdos quanto para os miúdos. Isso reflete-se na restante história, convoluta em certa medida, mas muito próxima das lógicas narrativas da Era de Prata das bandas desenhadas. Se querem realismos sisudos, vão ver outro filme, porque este “Superman” escolhe o caminho da sinceridade máxima e da inocência profunda.
E é assim que deveria ser com uma personagem sempre definida por esses simplismos desde a génese nos anos 30. Nesse aspeto, Gunn é fiel à essência da personagem de um jeito que nenhum cineasta foi desde Donner há quase cinquenta anos atrás. De outra forma, não teríamos esta aventura deliciosa, repleta de imagens e ideias tão caricatas como as traquinices de Krypto, o cão superpoderoso, um exército de macacos feitos trolls online ao serviço de Lex Luthor, o salvamento de um esquilinho no meio de um ataque de Kaiju, o cameo da Supergirl ou outros tantos momentos em que Gunn troca as voltas ao espectador contemporâneo e suas presunções.
Nem todos gostarão destes tons, mas eu confesso-me fã. No meio de uma enchente de filmes de super-heróis em que todos se assemelham uns aos outros, é um deleite ver como “Superman” foge às regras e retorna o género à sinceridade ingénua e otimista que estava lá nas suas origens primordiais. Tudo resulta? Não, especialmente quando Gunn tenta vincular que o público não deve amar a vilania de Lex Luthor de maneira alguma, encenando um espetáculo de crueldade em dissonância com o restante filme. Saberão do que falo quando virem a fita. Para já, ficam as palavras “justiça para Mali” como um apontamento necessário.
Outra fragilidade da fita é de natureza audiovisual. Não obstante o que Gunn acerta em termos de tom e história, “Superman” é muito feio a nível estético, pecando por uma fotografia atroz, cheia de grandes angulares e bizarras inconsistências cromáticas por parte de Henry Braham atrás das câmaras. A procura pelo classicismo textual é contrariada nesses aspetos da realização, mesmo que Judianna Makovsky e Beth Mickle façam tudo o que podem para estilizar o universo do Super-Homem em concordância com a inocência cartoonesca do argumento. Também os efeitos visuais deixam algo a desejar, mas é difícil dizer se é porque o CGI é medíocre ou se a fotografia merece levar com as culpas todas.
Vale a pena ver “Superman” no grande ecrã, até mesmo em IMAX 3D, mas não esperam nenhuma obra-prima visual ou um herdeiro justo ao legado desse clássico de 1978. Mas fora essas fortes falhas estéticas e um tom de difícil equilíbrio, o projeto merece grandes elogios. Já muito disse sobre a abordagem geral de Gunn e companhia e agora convém destacar alguns indivíduos, a começar pelos atores. O diretor de casting John Papsidera fez milagres na escolha do elenco e será justo dizer que David Corenswet é o melhor super-homem a agraciar os cinemas desde Reeve. Todo aquele idealismo está lá, toda a sinceridade, modulados às demandas dramáticas de uma aventura que vê o herói sofrer muito.
O elenco é um superpoder do filme.
Muito ajuda que a química entre Corenswet e sua Lois Lane seja impecável e que Gunn tenha a sagacidade para não desperdiçar a personagem da jornalista como filmes anteriores fizeram. E teria sido um crime desperdiçar Rachel Brosnahan que parece ter nascido para interpretar esta versão de Lane que, a certa altura, tem que comandar uma missão de salvamento ao seu amado das garras de Luthor. Esse careca maléfico é interpretado por Nicholas Hoult em mais uma prestação sublime do ator britânico, mesquinho até dizer chega e patético também, uma visão de maldade desenhada para inspirar desdém e aniquilar a possibilidade de idolatria.
O trio principal está impecável, mas podemos dizer o mesmo de Skyler Gisondo como um Jimmy Olsen mulherengo, do carismático Edi Gathegi como Mister Terrific, de um Nathan Fillion em modo apalhaçado, e de Pruitt Taylor Vince e Neva Howell como os pais adotivos do herói titular. O gesto mais arriscado que Gunn faz neste “Superman” será a sua subversão dos ideais kriptonianos, dando uma perspetiva inesperada sobre a família biológica do Super-Homem tal como nos aparecem em hologramas arquivísticos. Para essa façanha vingar, o elo afetivo dos Kent tem que ser indestrutível e palpável. Estes atores meio desconhecidos fazem isso mesmo, sem a distração da fama ou ideias pré-concebidas do espectador. No seu melhor, até nos puxam pela lágrima num momento cuja franqueza não tem nenhum daquele gosto calculado que algumas das sinceridades mais lacrimosas da fita arriscam.
Antes de concluir esta crítica, reivindicam-se salvas de palmas para mais alguns membros da equipa. Os compositores John Murphy e David Fleming não superam o génio de John Williams ou Hans Zimmer em fitas passadas, mas abençoam-nos como uma banda sonora de impor respeito apesar de tudo. As maquilhagens e coreografias de luta são uma delícia e até a montagem merece algum amor pelo modo como consegue pôr ordem nos inúmeros fios narrativos que Gunn propõe para o clímax da aventura. E voltando ao realizador, há que reconhecer a inspiração louca de quem aborda o desafio de um “Superman” para o século XXI e decide seguir estes idealismos babados e, pelo caminho, recicla uma série de ideias do “Em Busca da Paz” de 1987, o pior filme alguma vez feito sobre o herói da DC. Se é génio ou loucura ou magia negra não se sabe. Certamente, trata-se de um milagre.
“Superman” chega aos cinemas portugueses esta quinta-feira, dia 10 de julho, com distribuição da Cinemundo. Não percas!