"The Art of Fallism" | © Queer Lisboa

Queer Lisboa ’20 | The Art of Fallism, em análise

Com a sua análise de História política recente, “The Art of Fallism” é um importante retrato do ativismo moderno assim como um dos melhores filmes na Competição de Longas-Metragens Documentais do 24º Queer Lisboa.

No passado mês de junho, uma estátua do Padre António Vieira situada no Largo da Trindade Coelho em Lisboa foi pintada com a palavra “descoloniza”. Em boa moda reacionária, a imprensa portuguesa muito fez para retratar o evento como um ato de vandalismo inadmissível, um exagero das causas progressivas que assim se propõem a apagar a História na sua procura por justiça social. Poucas críticas de boa fé se encontraram nesse mês de controvérsia e até no cinema vimos respostas contra essa “descolonização” da História Portuguesa. No Espaço Nimas, por exemplo, foi programada uma exibição de “Palavra e Utopia”, um filme sobre Vieira assinado por Manoel de Oliveira, em nome do debate e também da polémica.

Muito se ignorou que a estátua não representa, de forma alguma um artefacto histórico (foi inaugurada em 2017) e que já na ocasião do seu erguer várias vozes críticas se tinham manifestado contra ela. Isso é fácil de entender quando vislumbramos o objeto em si, com sua visão meio paternalista do clérigo português rodeado por crianças indígenas que o olham em adoração, quase como se de um messias ele se tratasse. Com tudo isto, dito não estamos aqui propriamente para litigar as palavras escritas na estátua e sua potencial legitimidade. O que nos interessa grandemente é a resposta da imprensa e do populus.

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© Queer Lisboa

Se forem ler a cobertura mediática a que nos referimos, certamente encontrarão referências aos protestos Black Lives Matter que deflagraram por todo o mundo após George Floyd ter sido assassinado pela polícia nos EUA. Tais menções dão a ideia que a questão da descolonização da História é algo recente e que só este ano a queda de estátuas se registou desta forma. Dizer isso é ignorar séculos de História, de revoluções e revoltas, culturais e políticas, tantas vezes marcadas pela queda da iconografia dos regimes destronados. A destruição dos monumentos Nazis e soviéticos é muitas vezes vista como algo triunfal nas páginas dos nossos livros de História.

Contudo, nem é preciso ir tão longe para vermos um movimento organizado contra este tipo de monumentalidade em celebração de figuras moralmente deploráveis aos olhos de hoje. Em 2015, por exemplo, as universidades sul-africanas foram palco de uma revolta estudantil com cheiros de Maio de 68. O que começou como uma manifestação contra a estátua de um ícone do apartheid no campus da Universidade da Cidade do Cabo, depressa cresceu até englobar uma série de preocupações sociais da população jovem. Esta não é uma luta por mudar a História, entenda-se, mas uma luta por mudar o futuro e garantir que a Humanidade melhora ao invés de se manter estagnada e bêbada com nostalgia.

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Perdoem-nos a argumentação pouco sedutora, mas explicar a complexidade deste assunto e sua necessidade é uma tarefa difícil. Tanto isso é verdade que nos dá ainda mais ímpeto para aplaudir o trabalho de Aslaug Aarsæther e Gunnbjörg Gunnarsdóttir. Com o seu “The Art of Fallism”, esses cineastas construíram uma importante lição de civismo e História política recente, detalhando o movimento sul-africano, seus sucessos e fracassos, suas mais-valias e defeitos. Fazem tudo isso em menos de 90 minutos, conseguindo abordar ideias complicadíssimas com um sucinto apelo à razão e ao sentimento que, apesar da velocidade, não peca pela simplificação indevida. Não é perfeito, é certo, mas é melhor do que esperaríamos. Muito melhor, mesmo.

Parte do sucesso depende do enorme tesouro de matéria-prima que se tem devido à constante gravação da vida nesta era das redes sociais. Outra componente importante é o testemunho de variadas pessoas envolvidas no movimento e suas mutáveis vertentes. Através das palavras de quem lá estava, descobrimos a heterogeneidade de ideias e vemos a falácia do monólito ideológico da esquerda ser revelado em toda sua falsidade. Mesmo dentro do progresso, há interseccionalidade a considerar e um oprimido pode, noutra medida, ser também ele opressor. Isso é especialmente evidente quando se fala das pessoas trans e não-binárias que se viram apagadas pelo movimento ao mesmo tempo que lutavam pela igualdade racial.

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© Queer Lisboa

Melhor ainda é a reflexão dos jovens estudantes agora tornados adultos de estudos feitos. No cinema, o ativista é tantas vezes reduzido ao seu papel político que nos esquecemos que são pessoas. “The Art of Fallism” contraria essa noção errónea e, num dos seus momentos mais belos, mostra-nos uma mulher a falar de como luta para poder apreciar uma vida que não seja racializada. Ela quer estudar numa faculdade sem monumentos a celebrar um homem que, se ainda fosse vivo, lhe negaria a Humanidade a ela. Ela quer ver seus vizinhos menos afortunados terem também oportunidades para melhorar a vida. Ela quer entrar numa loja de doces e poder só pensar no amor ao açúcar e não nos olhares desconfiados de quem é racista sem se aperceber.

A complementar a força da entrevista e da poesia da palavra, a montagem da obra é exímia. Dividindo o filme em capítulos denominados por diferentes hashtags, os cineastas estruturam a obra como uma cronologia política. Assim nunca o documentário perde o fôlego, mantendo um nível constante de energia e curiosidade. Não admira que passe a correr. Recomendamos “The Art of Fallism” a quem quer que veja os noticiários e se interrogue, carrancudo, sobre a legitimidade destes protestos descolonizadores, antirracistas, pró-LGBT e tanto mais pelo mundo fora. O filme pode não converter os preconceituosos, mas serve de ótima introdução ao tema e ao discurso.

The Art of Fallism, em análise
the art of fallism critica queer lisboa

Movie title: The Art of Fallism

Date published: 23 de September de 2020

Director(s): Aslaug Aarsæther, Gunnbjörg Gunnarsdóttir

Genre: Documentário, 2019, 77 min

  • Cláudio Alves - 80
80

CONCLUSÃO:

Abordando alguns dos temas mais discutidos da atualidade, “The Art of Fallism” é uma preciosa introdução às tentativas de descolonizar por parte de ativistas jovens. Rápido e sucinto, quiçá em demasia, o filme nunca cansa e é uma ótima forma de estimular o pensamento e a discussão.

O MELHOR: A qualidade sucinta do filme e seus argumentos.

O PIOR: Por muita riqueza de testemunho que o documentário tenha, ficam a faltar entrevistas com algumas das pessoas que são criticadas mesmo dentro do movimento. Fala-se muito da discórdia interna, mas raramente isso é confrontado de forma direta.

CA

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