Na Competição de Longas-Metragens de Ficção do Queer Lisboa 24, podemos encontrar obras tão peculiares como “Comets” de Tamar Shavgulidze, um drama georgiano sobre paixões do passado e forças misteriosas do espaço sideral.
“Comets” é um daqueles filmes cuja história principal acontece antes da primeira imagem iluminar o ecrã. Trata-se de uma obra sobre o romance perdido nas marés do tempo e nas águas da memória, uma narrativa que está sempre a olhar para trás. O ontem dança com o agora, permeia seu corpo e aniquila a identidade. Passado torna-se presente antes de tudo explodir num devaneio onírico provocado por extraterrestres.
Depois de um prólogo com os olhos postos nos mistérios do universo e na tela de cinema, tudo começa de forma rigidamente casual. A câmara estática observa a conversa entre uma mulher de meia-idade e sua filha adolescente- A jovem revira os olhos e encara a matriarca com essa indolência irónica daqueles que já não são meninos, mas também ainda estão longe de ser adultos. Por sua vez, a mão não faz grande alarido pelo desrespeito e contenta-se com lavar fruta acabada de colher.
As atrizes entram e saem do enquadramento, muito falam e pouco dizem. Esta é uma mimese do quotidiano em toda sua inglória, o mundano perfeitamente capturado pela câmara que rejeita qualquer impulso para dramatizar o que vê. Tal é a monotonia do engenho que o olho do espetador é convidado a divagar pelo cenário, apanhando pequenos detalhes que nos ajudam a entender as mulheres da história mais do que as atrizes ou seu diálogo.
Acontece que forasteiros estão a caminho dessa casa na Geórgia rural. São familiares próximos, cunhadas asquerosas e meninos pequenos. Além deles, vem também uma figura do passado, uma mulher que em tempos conquistou o coração de Nana, a matriarca de quem já falámos. Ela é Irina e sua ausência já dura muitos anos, sendo que só foi interrompida pelo advento da morte. Quando os parentes falecem, há heranças a dividir e os sobreviventes errantes regressam todos ao ninho.
Através de um estilo minimalista, “Comets” detalha a reticente interação das duas mulheres. Quando a imagem corta, não respeita a linearidade do tempo e mescla o sonho do amor passado com o presente. É aquela dança entre o ontem e o agora que mencionámos anteriormente, algo que transcende o modelo do flashback. A montagem não anuncia o recordar, aglutinando os dois tempos da ação.
Se a cena contemporânea não nos dá a emoção fogosa, seu contraste com o idílio de outros tempos evoca melancolia e um sentido de grande perda. Nesse sentido, “Comets” é um bom exemplo de economia dramática e formal, um tipo de cinema feito com poucos recursos, mas grande disciplina. Com isso dito, podemos admirar a frugalidade e a imaginação do artista sem aplaudir em demasia o seu lavoro.
Temos aqui uma história que vive nos silêncios, nos amores que nunca são verbalizados e nos desejos que jamais despoletam a ação. Se um gesto abortado pudesse metamorfosear-se em filme, “Comets” seria uma boa aproximação do seu ser. Queremos com isto dizer que a indefinição tem limites, que o minimalismo nem sempre compensa e que um toque de emoção explodida não ficaria mal a este suspiro cinematográfico.
É claro que, quaisquer críticas de aborrecimento mortal não se aplicam aos minutos finais de “Comets”. Quando a conclusão se anuncia, o filme dá uma valente cambalhota tonal e vai buscar ao prólogo suas ideias de cosmogonia fantasiosa. De repente, o realismo reprimido dá lugar a uma estilização quebrante, cheia de efeitos sonoros artificiais e uma pátina alienante de irrealidade. Se calhar, tanta é a dor do amor perdido, da flor da paixão que se deixou murchar, que só mesmo o advento do OVNI pode ilustrar o que vai no coração.
Movendo-se a um ritmo glacial apesar de ter só 70 minutos, “Comets” testa a paciência do espetador e recompensa-o com um uma história de amor perdido muito pouco convencional. Minimalista e económico, este drama termina numa nota confusa que tanto fascina como frustra.
O MELHOR: A disciplina elegante da filmagem, mesmo que essa mesma técnica acabe por prejudicar a totalidade da obra. Isso e a loucura do fim.
O PIOR: Este é um filme em que praticamente nada acontece, tanto a nível formal como narrativo. Até o mais devoto cinéfilo terá dificuldade em não cair num transe de aborrecimento mortal, por muito tresloucado que o final seja.