Em The Last Family, o cineaste polaco Jan P. Matuszynski constrói um filme biográfico incomum e de um verismo histórico tão admirável quão alienante. Este é um dos títulos disponíveis e completamente gratuítos, até dia 17 de dezembro, no site do festival ARTE Kino.

Tal como uma imensa quantidade de outros filmes, “The Last Family” abre com a frase “Este filme é baseado numa história verídica.”. Enquanto muitos cineastas gostam de atirar este tipo de afirmação numa desenfreada busca por respeitabilidade e prestígio, poucos são os realizadores que poderiam com segurança retirar o “baseado” dessa frase e não estar a mentir. O polaco Jan P. Matuszynski é um desses raros cineastas e “The Last Family”, mais do que ser uma usual representação dramatizada de uma biografia, é algo muito mais próximo de um tipo de cinema de pesquisa arqueológica e quase antropológica. De facto, todo o projeto e sua insana procura por verismo histórico, germinou de um extensivo trabalho de investigação levado a cabo por Robert Bolesto, o argumentista que passou anos a pesquisar a vida familiar do pintor surrealista Zdzislaw Beksinski que, desde 1977 até à sua morte, documentou obsessivamente o seu dia-a-dia e a vida da sua família em gravações áudio, textos e até vídeos.
É precisamente dessa documentação e de um livro biográfico feito contra a sua vontade ainda em vida, que Bolesto e Matuszynski partiram no seu esforço de trazer ao cinema esta vida familiar, despida de manipulações dramáticas. E, numa derradeira análise, “The Last Family” é um filme sem esqueleto dramático, cuja forma final se assemelha a uma desconexa coleção de momentos na existência banal da família Beksinski e cuja ação está quase sempre limitada ao interior de dois apartamentos no mesmo complexo.

Nessas habitações vivem Beksinski, que trabalha em casa nas suas pinturas pós-apocalípticas; sua esposa Zofia; Tomasz, o filho maníaco-depressivo que, pelo seu trabalho na divulgação musical, se tornou quase tão famoso como pai; e sua sogra e mãe, que são sempre presenças periféricas que passam o filme num lento processo de definhar e eventual morte. Sem toques dramáticos, o drama da vida humana e sua inerente volatilidade consomem o filme e dão-lhe uma desconcertante arritmia que parece quase refletir a insana energia de Tomasz que está sempre a tentar suicidar-se e a explodir em momentos de violenta euforia.
Tal como na unidade familiar, entre a passividade documental do patriarca e a fogosidade filial, existe uma âncora sob a forma de Zofia. Ela é uma figura que tem sido negligenciada na história pública desta família mas que em “The Last Family” é exibida como o centro de toda a unidade doméstica. De forma semelhante, a prestação de notável subtileza dada por Aleksandra Konieczna é a cola que dá coerência estilística a um filme cujo elenco orbita em volta de dois registos quase antagónicos, um sereno e quase inexpressivo tipificado por Andrzej Seweryn como o pintor, e outro de gritaria e extrema fisicalidade que tem o seu píncaro na louca prestação de Dawid Ogrodnik enquanto Tomasz.
O trabalho de ator é, aliás, colocado no centro de todo o edifício cinematográfico, sendo que a abordagem de Matuszynski é uma de impiedosa observação objetiva. Para isso, ele mostra-se monstruosamente económico na montagem e sempre dá prioridade a longos planos sequência, estáticos ou em agressivo movimento, que reforçam os limites espaciais dos apartamentos e colocam a família num jogo de teatro voyeurístico. No meio do caos vivido pela família, ou suas prolongadas tragédias, a fria formalidade na abordagem do cineasta torna-se um companheiro da documentação exaustiva que, dentro do próprio filme, Zdzislaw está a fazer da sua vida. Na rigidez do enquadramento, as minúcias da dinâmica familiar ganham o impacto de quedas de impérios e cataclismos bíblicos.

Essa frieza formal, onde se procura a objetividade, também marca a sua presença na construção do mundo material em que a ação decorre. Longe de tentar reproduzir a atmosfera das pinturas do protagonista ou a energia sinfónica da música pela qual Tomasz é apaixonado, “The Last of Family” é um exemplo de virtuosa reprodução histórica. Todos os detalhes cenográficos, cosméticos, de figurino e música são o produto de extensa pesquisa e de uma procura monumental por verismo histórico.
Quando o filme nos mostra filmagens em VHS, apenas os atores nos indicam que não estamos, de facto, a ver imagens de arquivo, tal é a exatidão desta reprodução. E é precisamente nessa materialidade que o filme traça o avançar do tempo, sendo que, aparte de um salto cronológico no início, nunca há nada a nos indicar em que ano a ação decorre. Por vezes, saltamos dias, semanas, meses e mesmo anos, sem qualquer aviso e cabe à audiência encontrar significado no que é, inevitavelmente, o acaso sem sentido de uma coleção de vidas humanas em sofrido desenrolar.

Ao longo de “The Last Family”, nunca ficamos com a impressão de que este é um biopic de uma família de artistas ou um retrato histórico. De facto, o trabalho do pintor e do entusiasta musical raramente são celebrados pela câmara e o contexto histórico da Polónia em mudança e revolução é-nos roubado. Presos à hermética realidade do ambiente doméstico e sua privilegiada insularidade política e social, esta obra acaba por ser muito mais um retrato, quase primordial, do que é a família e do que é a vida passada em comunhão com outras pessoas próximas. De facto, numa conversa em que marido e mulher parecem delinear a tese do filme é pronunciada a seguinte frase: “a família é um grupo de pessoas que gostam e desgostam uns dos outros em igual medida”. É uma afirmação seca e anti sentimental que, no entanto, tem latente uma melancolia diabólica e tragicamente comum nas nossas vidas.
[Esta crítica foi originalmente publicada no dia 14 de novembro de 2016, aquando da cobertura do LEFFEST]