The Staircase © HBO Max

The Staircase minissérie, primeiras impressões

The Staircase” é uma excitante e perturbadora minissérie criminal baseada no mediático e controverso “assassinato” de Kathleen Peterson, que arranca de Colin Firth e Toni Colette duas interpretações absolutamente brilhantes. À décima reinterpretação dos factos, será que ficamos com mais certezas de que Michael Peterson matou mesmo a sua mulher?

“The Staircase” é o novo pomposo drama original produzido pela HBO Max, mas na verdade é já um nome consensual no meio televisivo, não tivesse o hediondo caso da duvidosa morte de Kathleen Peterson sido explorado até à exaustão em documentários e magazines criminais. Mas então, que motivo de força maior existirá para reabrir uma ferida cauterizada à força por uma condenação sustentada em provas inconclusivas, falsos testemunhos e um julgamento viciado? Bem, talvez seja necessário deixar de lado a matéria de facto e procurar as evidências naqueles detalhes do diabo escondidos na personalidade de cada interveniente, que o criador Antonio Campos tão bem sabe exumar das suas personagens como já se viu em “The Sinner“. E que tela mais fresca para Campos preencher de intensão e sentido do que a de um homem condenado com uma individualidade como o próprio refere “impenetrável e impossível de se decifrar”, que Colin Firth assume com um tremendo jogo de cintura emocional, obrigando-o a sair da sua zona de conforto aos sessenta e um anos de idade. O mesmo poderá ser dito da esfuziante entrega de Toni Colette, ela que nem aprecia este género televisivo do “true-crime”, não deixa de evocar com graciosidade o espírito matriarca de uma Kathleen endurecida pela sua independência marital, colorindo, assim, uma omissão do documentário homónimo em que se baseia “The Staircase”, obcessivamente focalizado em Michael Peterson.

Objetivamente, este “Staircase” agarra em todo o material probatório recolhido pelo premiado realizador francês Jean-Xavier de Lestrade, que acordou com Peterson e o seu advogado David Rudolf (Michael Stuhlbarg) em apanhar tudo o que pudesse engrandecer a sua defesa: desde a fase instrutória levada a cabo pelo promotor público ou “district attorney” Jim Hardin (Culen Moss), até à denúncia formal (“indictment”) diante do painel de cidadãos do “Grand Jury”, e consequente encarceramento prisional com toda a cobertura do julgamento, num embrulho dramático muito menos “caseiro” e mais cinematográfico. Maggie Cohn, que a imprensa cor-de-rosa afirma estar de amores por Colin Firth, nem de propósito, escreve e produz ao lado de Campos, depois de já ter calejado em “American Crime Story” e “Narcos“. Na apresentação da série numa conferência de imprensa virtual, ambos afirmaram que a sua proposta destingue-se das demais neste segmento do crime real por contrariar a tendência de que só existe uma verdade absoluta, possibilitando explorar o que não se vê para além do óbvio, e que necessita de ser desenterrado da impressão digital deixada pela psique humana na convivência conjugal e envolvência familiar dos Peterson. Mas mais do que uma simulação de pulsões e vontades individuais, que possam levantar ainda mais o véu sobre o que de facto aconteceu na fatídica noite de 9 de Dezembro de 2001, “The Staircase” pretende desmistificar o homem antes do rótulo de qualquer ato, concedendo igual oportunidade ao público de reconstituir a índole de Kathleen Peterson enquanto esposa e mãe.

The Staircase Corpo
The Staircase © HBO Max

Assim sendo, entramos nesta escadaria do inferno com uma curiosa citação bíblica acerca da verdade de Pilatos, que nos leva para uma prolepse adiantada no tempo, antes de ouvirmos a suplicante transcrição da chamada telefónica de Michael Peterson para a linha de emergência. E se esse singelo momento de tensão auditiva é suficiente para captar a máxima atenção do espetador, a exposição visual que se segue é morbidamente arrepiante ao ponto de poder ferir os mais sensíveis de coração e estômago. Rapidamente, o corredor de acesso ao andar superior da mansão é declarado como zona de crime, com Peterson a balbuciar em estado de choque enquanto é confortado pelo filho mais novo Todd (Patrick Schwarzenegger), que foi o primeiro a chegar ao local, meros dez minutos após o incidente ter ocorrido. Campos capta estas incidências alarmantes com grande pujança dramática e sensação de extremo realismo, perseguindo os planos do rosto em busca da emoção crua, que Firth tão bem respinga cá para fora convicentemente. E enquanto vamos pisando com o olhar a meticulosa e folclórica mise-en-scène daquela madrugada ensanguentada e dos dias subsequentes, limpamos o prurido da vista e sossegamos a alma com breves brisas de memórias menos tétricas, mas não menos provocadoras, que começam a pautar a tarifa qualitativa da relação matrimonial.

De facto, todos os atores estão ao nível dos seus papéis, o que não é nada fácil, uma vez que interpretam pessoas reais, e só por esse motivo não têm margem de manobra para desvirtuar as suas essências. Curiosamente, Firth, que acabou por ser escolhido para o complicado papel em detrimento de Harrison Ford, afirmou que a preparação para encarnar Michael Peterson foi deveras desafiante pela tremenda ambiguidade do seu caráter, revelando-se um exercício “muito palpável de elusividade e insondabilidade humana”. É aqui que Campos é exímio em fabricar aquela atmosfera positiva ou inofensiva que a qualquer momento pode descambar, muito por culpa dessa tal linguagem corporal escorregadia e sibilina de Michael, que parece definir uma plataforma movediça em relação à força dos elos estabelecidos entre os filhos, o pai e a madrasta. No entanto, nenhum deles contesta a inocência da figura paternal, embora paire sempre no ar uma greta de dúvida emanada de um canto obscuro inegável em Michael, que tanto o pode pintar como um santo carinhoso e indulgente, como um vilão narcisista com a mentira na ponta da língua. Por seu turno, Kathleen é personificada como a tradicional mãe dedicada e uma executiva de sucesso, que se sente aprisionada e sufocada no seu casamento, dando possibilidade a Toni Colette de reivindicar-lhe algum protagonismo como pessoa, que “não glorificasse apenas Michael e a objetivasse apenas como uma mera vítima”.

The Staircase Corpo
The Staircase © HBO Max

“The Staircase” é um quebra-cabeças de animal vivo envolto na máxima especulação e intriga, que rodopia numa panela de pressão e vai cuspindo novas certezas e incertezas de hora em hora enquanto cose lentamente. Ao fim de vinte e um anos e outros dezasseis numa batalha legal, aquele que foi apelidado de “o julgamento do século” da Carolina do Norte, prossegue agora numa caravana de meia ficção, mergulhando-nos numa autópsia doméstica, que vai dissecando prova por prova e cérebro por cérebro na obtenção de uma verdade ainda mais próxima da verdadeira verdade. “The Staircase” é unanimemente uma produção televisiva de prestígio, que continuará a assombrar, provavelmente para sempre…

Já podem visualizar os quatro primeiros episódios deste fascinante caso de estudo criminal na plataforma da HBO Max.

Miguel Simão

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