MOTELx ’16 | Tickled, em análise

Tickled é um insólito documentário sobre o submundo dos aficionados por cócegas, onde o que é primeiro hilariante depressa começa a revelar uma série de sinistros segredos, conspirações e abusos de poder.

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Um dia, o repórter televisivo neozelandês David Farrier deparou-se com algo curioso e extremamente peculiar na internet. Tratava-se de um website, denominado Jane O’Brien Media, em que eram publicados vídeos de jovens atléticos no que, supostamente, seriam competições de resistência a cócegas. Fascinado pela bizarria do assunto, Farrier tentou comunicar com os responsáveis por essa instituição, mas nada o preparava para a resposta à sua inocente tentativa de comunicação. Uma enchente de e-mails de regularidade quase diária abateu-se sobre ele, cheios de insultos homofóbicos e numerosas ameaças de ação judicial que remetem para uma versão demoníaca de Donald Trump em esteroides. Como é que tudo isto se precipitou de uma simples investigação a um site aparentemente inócuo apesar do seu estranho conteúdo?

Como todos os que viram Tickled, leram sobre o filme ou simplesmente viram o seu trailer, a este primeiro contacto hostil seguiu-se uma avalanche de reviravoltas e crescente paranoia que parece ter saído de uma insana comédia satírica. Quando Farrier decidiu começar a desenvolver um documentário com Dylan Reeve, o produtor das suas reportagens da TV, três representantes da Jane O’Brien Media vieram de Los Angeles para os intimidarem. Isso não resultou bem como eles esperavam, apenas atiçando a sede por respostas, e lá foram os dois documentaristas para os EUA, onde foram desmascarando um submundo focado no fétiche das cócegas e, mais estranho ainda, uma imensa organização global cujo mistério estava a ser mantido por uma série de ameaças, coerções e difamações, onde os jovens dos vídeos eram as principais vítimas. Seguindo o trilho de abusos de poder e injustiças macabras, eles foram encontrar a pessoa por detrás de tudo isto.

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Esclarecer mais algum detalhe entraria no campo dos imperdoáveis spoilers e isso roubaria ao leitor, que não tenha estado no MOTELx, muito do prazer de ver Tickled pela primeira vez. E, há que se salientar, testemunhar a insanidade deste filme é de um valor de entretenimento sem igual. Não há nada da Marvel que consiga rivalizar a simples euforia que esta obra provoca, parecendo uma reportagem sensacionalista estendida ao tamanho de uma longa-metragem e com doses reforçadas de drama e o tipo de absurdo que só dá mesmo para encontrar na vida real.

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O dramatismo é tão grande, na verdade, que é impossível argumentar que não houve umas valentes manipulações de cronologia e conveniência pela parte dos cineastas. Mas, mesmo com várias edições cosméticas, a essência insólita desta conspiração das cócegas mantem-se completamente credível dentro do contexto do filme, nunca alienando a sua audiência com saltos de lógica demasiado rebuscados ou visivelmente trabalhados para a câmara.

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Independentemente de tais considerações, uma coisa é certa, completar este filme e mostrá-lo ao público foram decisões muito perigosas para os cineastas. E, nesse aspeto, temos algo que normalmente não se vê na maioria dos documentários, que é o esbatimento das barreiras entre a sala de cinema e o mundo que a câmara capturou. Isso é uma maneira muito rebuscada de nos referirmos a um dos mais bizarros Q&As na história dos festivais de cinema quando, durante uma exibição em Los Angeles com a presença de Dylan Reeve, dois dos principais sujeitos do exposé marcaram também presença e atacaram publicamente o cineasta. Tudo isto está gravado, visto que o evento estava a ser posto no facebook ao vivo pela Magnolia Pictures, e, mais do que mostrar ao mundo como a sua vilania é apenas um produto do filme, este par de indivíduos veio reforçar quaisquer negativismos que a audiência já pudesse ter sobre eles.

No entanto, esse espetáculo grotesco de ameaças públicas e acusações histéricas levantou uma questão interessante. Uma das pessoas exigiu a Reeve que ele divulgasse a totalidade de uma das entrevistas que ele fez sem o consentimento das pessoas envolvidas. Nesse vídeo completo estará um pedido específico para que tudo ali fique “off the record” o que pode não significar muito para casuais cinéfilos mas para quem se interessa pelas éticas do jornalismo, isto levanta muitos problemas. Se ainda há quem questiona a moralidade e ética jornalística de Claude Lanzman quando ele filmou, em segredo, conversas que teve com oficiais nazis para o seu Shoah – o melhor documentário alguma vez feito sobre o Holocausto – então podem crer que Reeve e Farrier, assim como os seus fãs, não vão poder simplesmente descartar a importância disto. Mesmo que tudo o que eles dizem tenha razão, estes cineastas criaram uma peça de jornalismo que é promovida como uma peça de entretenimento comercial e que, na sua construção, viola regras éticas importantíssimas.

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Para atiçar as chamas da fogueira da contrariedade, ao construírem um ataque pessoal que vai destruir e marcar para sempre o nome da pessoa que os cineastas acusam de estar por detrás de todo este mundo de abusos e assédios, os realizadores de Tickled construíram uma espécie de equivalente cinematográfico dos websites criados por essa pessoa vilanesca para silenciar e humilhar publicamente os rapazes envolvidos nos vídeos de cócegas. Será que queremos mesmo celebrar algo que epitoma a filosofia “olho por olho, dente por dente”?

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Com tudo isso em consideração, há ainda duas verdades a ter em mente antes de concluirmos esta análise. Primeiro, Tickled é um extraordinário documento sobre o desmesurado poder que, na nossa sociedade atual, vem com a riqueza económico das elites e do modo como a internet está a oferecer o anonimato quase absoluto a uma série de potenciais abusadores. E, em segundo lugar, mesmo que seja um documento factual de dúbia qualidade, como um thriller de paranoia à moda dos anos 70 com pitadas de humor absurdista, Tickled é um dos maiores triunfos do ano. Em resumo, quer adores, odeies ou fiques completamente ambivalente às suas revelações (algo difícil, avisamos), este é um filme absolutamente imperdível.

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O MELHOR: O simples divertimento de todo o projeto. Horas depois de sairmos da sala de cinema, podemos começar a questionar-nos sobre ética e veracidade jornalísticas, mas, no momento, Tickled é imbatível como um objeto de puro entretenimento.

O PIOR: Para além de tudo o que já aqui foi apontado, há que se falar em como os cineastas conceberam uma obra que humilha bastante as pessoas com este particular fétiche. Mesmo quando o filme nos apresenta um homem destas proclividades, que nada tem que ver com os sinistros imbróglios da misteriosa entidade por detrás da Jane O’Brien Media, há sempre uma certa condescendência gozona no modo como tudo é filmado e apresentado.


 

Título Original: Tickled
Realizador:  David Farrier, Dylan Reeve
MOTELx | Documentário, Thriller, Comédia | 2016 | 92 min

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