TIFF ’24 | O grande regresso de Mike Leigh ao cinema
No segundo dia do TIFF, Mike Leigh celebrou o seu regresso ao grande ecrã com “Hard Truths,” um dos filmes mais comoventes do ano.
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Mike Leigh já ganhou a Palma de Ouro e o Leão de Veneza, em 1996 e 2004 respetivamente. Contudo, o cineasta Britânico continua a ter dificuldade em financiar os projetos ou até mesmo mostrá-los no circuito festivaleiro. Há rumores que a sua mais recente façanha foi rejeitada pelos grandes eventos europeus, demonstrando a estranha posição do realizador dentro da sua mesma indústria. É o que acontece quando se faz cinema político e pessoal. Dito isso, Toronto lá recebeu o mestre do cinema de braços abertos e o seu regresso marcou o ponto alto deste segundo dia. Dito isso, antes de chegarmos à estreia mundial de “Hard Truths,” há muito cinema para apreciar.
Zhao Tao e Jia Zhangke em estado de graça.
Jia Zhangke é um dos cineastas mais importantes da China contemporânea, documentando a história recente do seu país em obras radicais que oscilam entre a narrativa e a não-ficção. “Caught by the Tides” é o seu mais recente trabalho e, de certa maneira, representa um culminar de toda a carreira. De facto, é uma reinvenção de muito trabalho passado do realizador, reciclando filmagens feitas desde o auge do novo milénio para construir uma narrativa ao mesmo tempo íntima e grandiosa, um poema sussurrado e uma epopeia gritada a alto e bom som. É a história de Qiao Qiao que, qual Sísifo do cinema, parece condenada a fazer a mesma travessia até à eternidade, sempre na busca do homem que amava.
“Unknown Pleasures” e “Still Life” são as principais fontes de matéria-prima, mas há pormenores tirados de muitos outros filmes, ficção e documental, antigos e recentes, numa panóplia de registos e texturas. Em certas passagens, essas mesmas imagens são re-organizadas num estilo próximo do mudo. O ponto unificante é Zhao Tao nesse papel principal, uma âncora para a fita e para o cinema de Jia Zhangke de modo geral. Em “Caught by the Tides,” ela assume-se como a cara do seu país, uma personagem levada pelas correntes da história, dos cismas tecnológicos e sociais. Em grande plano, ela é o milagre da sétima arte no seu estado mais puro, algo que o seu marido e realizador sabe bem usar. Nessa medida, o filme é tanto uma reflexão do país como uma carta de amor.
Se houvesse justiça no mundo, “Caught by the Tides” teria ganho algo em Cannes, onde competiu. Infelizmente, saiu de mãos a abanar. Atrever-nos-íamos até a dizer que merecia mais a Palma do que a fita que a ganhou, mas isso é uma conversa para outro dia.
“Harvest” é uma bonita desilusão.
Há muitos anos que os fãs do cinema esperavam pelo novo filme da grega Athina Rachel Tsangari. “Harvest” marca o seu retorno à ribalta, mas também proporciona uma viragem fascinante no seu percurso profissional. Longe estão os dias em que a realizadora se focava no absurdismo da masculinidade e se limitava à contemporaneidade Grega em produções de orçamento paupérrimo. Em associação com produtores internacionais, inclusive a equipa por detrás do cinema de Ken Loach, Tsangari propôs-se a adaptar “Harvest” de Jim Crace sobre a destruição de uma vila no século XVII em Inglaterra.
Só que Tsangari decidiu mover a narrativa para a Escócia ao mesmo tempo que salienta a sua vertente mais política, articulando uma crítica a xenofobias contemporâneas através do cinema de época. Essa escolha troca as voltas aos preceitos da história e seus equivalentes modernos, levando o filme à incoerência. Personagens subdesenvolvidas e narrações desnecessárias não ajudam, e pode-se dizer o mesmo de um elenco meio famoso, com Harry Melling e Caleb Landry Jones, que nunca convence nos papéis atribuídos. Dito isso, “Harvest” é belíssimo, com fotografia de Sean Prince Williams em gradações de grão e cor rubra, assim como uma banda sonora deliciosa. São esses elementos que salvam a fita.
Pêpê Rapazote entre estrelas de Hollywood.
O TIFF traz muitas estrelas de cinema a Toronto, com Hollywood a desfilar pelo tapete vermelho todo o santo dia. Dito isso, também mistura a realeza da indústria Americana com grandes atores de outros países, inclusive algumas personalidades lusitanas. Assim acontece com Pêpê Rapazote num filme brasileiro com aspirações Shakespearianas. “Os Enforcados” é seu nome e sua maldição, pois todas as personagens acabam por atar a forca à volta do próprio pescoço na sua sede de poder e luta pela sobrevivência num Rio de Janeiro virado império do crime. A história tem ares de “Hamlet” e “Macbeth,” com algum “Titus Andronicus” metido pelo meio.
Verdade seja dita, a primeira hora desta proposta brasileira deixa um pouco a desejar, revelando em demasia as suas influências teatrais ao mesmo tempo que exulta um estilo meio televisivo. Felizmente, à medida que os esquemas das personagens colapsam e a paranoia surge, o filme de Fernando Coimbra ganha nova vida. Também é nesse segundo ato que Rapazote emerge como figura fulcral, um polícia com potencial corrupto em busca de respostas num mistério simples, mas sanguinário. Suas cenas partilhadas com Leandra Leal, em modo de Lady Macbeth carioca, são alguns dos pontos altos da fita. A tensão é de cortar à faca, mesmo quando a carnificina final parece predestinada deste o início.
As verdades duras de Mike Leigh.
Finalmente, o dia terminou com Mike Leigh em regresso magistral e muitas ovações de pé no Royal Alexandra Hall de Toronto. Seu “Hard Truths” regressa ao millieu Caribe-Britânico que havia primeiro explorado em “Segredos e Mentiras,” e foca-se numa família disfuncional cuja tormenta revolve em torno de Pansy, uma mulher com problemas de raiva que passa todo o santo dia a atirar gritos insultuosos a tudo e todos. Nem o marido e o filho saem ilesos, mas é difícil não nos rirmos com o vitupério colorido que lhe sai da boca. De facto, na sua primeira hora, “Hard Truths” é uma das comédias mais hilariantes que Leigh já assinou. A felicidade não dura, pois claro, e o estudo de personagem força uma empatia devastadora.
Com uma sequência fulminante passada no Dia da Mãe, Leigh inverte os preceitos tonais do seu trabalho e força-nos a examinar a agonia visceral no coração de Pansy e aqueles afetados pelo seu temperamento. Trata-se de um gesto dramático capaz de cortar a respiração e deixar o espetador desamparado, preso na transição entre a gargalhada e um riso choroso. No meio de tudo isso, Marianna Jean-Baptiste entrega-se ao papel principal como uma mulher possuída, oferecendo ao público uma das prestações mais gloriosas de todo o ano cinematográfico. Se houvesse justiça neste mundo infeliz, a atriz já teria nomeação garantida para o Óscar.
Cobertura TIFF:
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