TIFF ’24 | O Leão e a Palma de Ouro chegam a Toronto
No terceiro dia do TIFF, os vencedores da Palma de Ouro e do Leão de Veneza estiveram em destaque Será que “Anora” e “The Room Next Door” também vingaram em Toronto?
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Em muitos casos, as primeiras audiências fora da Europa a vislumbrar os grandes vencedores dos festivais do Velho Mundo são as do Toronto International Film Festival. Aqueles interessados em prémios, sabem muito bem que este é um teste do fogo. Se os trabalhos aclamados pelos júris de Berlim, Cannes e Veneza conseguirem conquistar a adoração do público no TIFF, então há sonhos doirados no seu futuro. Mas um festival não se faz só para prémios e grandes nomes. No meio das obras consagradas, encontramos várias joias das quais pouco se fala. Oscilando entre superestrelas e astros menores, vamos à descoberta do que TIFF tem para oferecer.
Será que “Anora” é sobrevalorizado?
Além do “Brutalist” de Bradey Corbet, a nova criação de Sean Baker foi a que suscitou as filas mais compridas nas sessões para crítica e indústria. Todo o mundo quer ver “Anora” e apurar se a imprensa internacional acertou no seu amor pela fita ou se é um daqueles casos de febre festivaleira. Bem, de forma geral, as audiências em Toronto renderem-se ao drama com laivos de comédia screwball. Como se pode resistir às aventuras de uma stripper que comete o erro capital – apaixona-se por um cliente e acredita nas suas promessas de matrimónio idílico. De história de amor a circo criminal, do riso à lágrima passando por uma injeção de adrenalina.
Dito isso, lá porque a maioria acha uma coisa, nós não temos que concordar. De facto, o filme tem fragilidades muito centralizadas. Considere-se a figura titular, um esboço mais que uma personagem, cujo comportamento parece ditado pelas situações em que Baker a quer meter ao invés de uma personalidade consistente. Esse aspeto mais negativo do filme culmina na sua última cena, um gesto melodramático que trai a resiliência até então personificada por Anora, conhecida como Ani entre amigos. Enfim, são problemas fortes, mas não arruínam a experiência. A mestria de Sean Baker está bem evidente, com seus talentos na realização a compensar as falhas textuais.
Além disso, ele continua a ser um ás na escolha dos elencos, apresentando uma equipa de gente desconhecida, mas cheia de potencial, que aqui encontram uma chance para mostrar o que valem. O maior exemplo disso é Mikey Madison no papel principal, mas Paul Weissman e Yura Borisov. Cá por Toronto, já se fala na possibilidade do filme ganhar o Prémio do Público e nas possibilidades de Óscar, tanto para Baker como seus atores, talvez até para a montagem e a fotografia de Drew Daniels. Uma coisa é certa, Madison tem que se preparar para desfilar em muitos tapetes vermelhos. Este é o momento em que nasce uma nova estrela no firmamento de Hollywood.
Aventuras ucranianas no espaço.
Apesar do que acontece nessa nação invadida, a Ucrânia continua a produzir cinema. E nem todo o filme se foca no conflito atual. Alguns, como “U Are the Universe,” olham para o amanhã, para um futuro infeliz em que toda a Terra explode de um dia para o outro. Pensar-se-ia que esse seria o fim da raça humana, mas algumas almas perdidas estavam à deriva no espaço. Tome-se o exemplo de Andriy, um trabalhador que leva detritos radioativos para fora do planeta – uma espécie de homem-do-lixo para o futuro interestelar. Quando a calamidade ocorre, ele nem nota, distraído com a mundanidade da vida na pequena nave espacial a que chama casa.
Volodymyr Kravchuck entrega-se ao papel com grande abandono, estando especialmente predisposto a explorar as vicissitudes do humor negro que o realizador Pavlo Ostrikov polvilha pelo filme como um pasteleiro espalha açúcar em pó em cima dos seus bolos. Que delícia, mas há um travo de amargura dentro da sobremesa cinematográfica. Devém de uma amizade nascente entre Andriy e uma outra sobrevivente da raça humana, algures em rota de colisão com as luas de Júpiter. A sua relação evolui para romance no coração de Andriy, mas talvez não no âmago da mulher destinada a morrer sozinha.
Gostaríamos de felicitar toda esta equipa, emaranhados numa produção nada fácil. Infelizmente, as qualidades desta ficção científica à escala menor não se sobrepõem a questões de escrita ou à enfadonha linguagem visual com que Ostrikov apresenta o conto. Também os clichés se amontoam e é possível prever tudo o que acontece na história com a precisão de um cronómetro. Pelo menos, temos a luz transformadora de Nikita Kuzmenko para aplaudir, assim como a cenografia da nave espacial, inclusive o robot auxiliar que serve como principal companheiro para Andriy. É claro que, como Kubrick já nos mostrou, não se deve confiar nessas entidades computorizadas.
Em nome da morte com dignidade.
Uma das questões mais fortes de “U Are the Universe” é a autonomia de uma pessoa sobre a sua própria morte. Como e quando encontramos o fim pode ser uma forma de mantermos a nossa dignidade e dizer adeus sem arrependimentos, de evitar sofrimento desnecessário e partir enquanto a pessoa que sabemos ser ao invés de alguém transformado pela doença. Trata-se de um tema transversal a múltiplos filmes do TIFF. Olhemos o exemplo de “Polo serán,” uma coprodução entre Espanha, Itália e a Suíça que segue um casal decidido a morrer junto por suicídio assistido. Fazem-no por amor quando Claudia é diagnosticada com um cancro terminal.
Sua ligação com Flavio é uma preciosidade, maravilhosamente conseguida pelo realizador Carlos Marqués-Marcet e seus atores. Ángela Molina é formidável e indomável, mas é Alfredo Castro quem se mostra rei da fita, apresentando-se numa vertente arduamente romântica rara na sua filmografia. Todo o filme trabalha essa delicadeza apaixonada, ao mesmo tempo que encara o fado das personagens através das especificidades de dois artistas cujo modo de ver o mundo passa pela criação teatral. Há interlúdios musicais e tableaux dignos dos palcos, miniaturas e poemas épicos contidos num só olhar. Há um universo no coração de cada um, mas, no fim, todos seremos pó.
Almodóvar coroado e ausente.
A meditação sobre a eutanásia continua em “The Room Next Door,” o filme que valeu a Pedro Almodóvar o Leão de Ouro no Festival de Veneza. A vitória aconteceu no mesmo dia que o filme passou no TIFF, levando à falta do realizador no tapete vermelho. Felizmente, Tilda Swinton e Julianne Moore marcaram presença, sempre eloquentes e luminosas, tanto dentro como fora de cena. Mas não há glamour que eclipse as realidades dolorosas do filme, sua história de duas escritoras amigas e unidas por um pacto desesperado. Martha está a morrer e quer dizer adeus antes de definhar por completo. Para isso, quer a companhia de Ingrid numas férias para as montanhas. Lá, ela tomará o comprimido mortal e quer ter alguém no quarto ao lado quando isso acontecer.
“The Room Next Door” representa a primeira longa-metragem que o realizador espanhol roda em inglês e há algumas marcas de adaptação penosa nas suas escolhas linguísticas. Não é muito diferente da estilização textual já presente na obra do cineasta, mas torna-se mais evidente aqui devido ao choque da nova linguagem. Além disso, Almodóvar trabalha a especificidade Americana desta história, baseando-se em muitas pinturas para enquadramentos e cenários, desde “O Mundo de Cristina” de Andrew Wyath até às cores e composições de Edward Hopper. Por outras palavras, o filme é belíssimo, cada fotograma digno das paredes de um museu. O drama humano está ao mesmo nível das imagens e Swinton, em particular, abençoa-nos com uma prestação incrível que vai desde o cadavérico ao angélico, de mãe a filha, mulher moribunda a ausência fantasmagórica.
Cobertura TIFF:
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Para o quarto dia de festival, temos reservado encontro com Amy Adams em modo canino e uma nova mestra do cinema chamada Dea Kulumbegashvili.