Timestamp: Como a Ucrânia se candidata a ganhar o Urso de Ouro da 75ª Berlinale?
A Ucrânia pode não ganhar a guerra, mas pode sair daqui da 75ª Berlinale com o Urso de Ouro de 2025. “Timestamp” da realizadora Kateryna Gornostai, um dos últimos filmes apresentados na Competição é um poderoso documentário ucraniano que captura com grande objetividade, a resiliência das crianças e dos professores na Ucrânia, em levar a vida para a frente, em tempos de guerra.
“Timestamp”,(“Strichka Chasu”, no original) da realizadora ucraniana Kateryna Gornostai, estreou na Competição da 75ª Berlinale no momento certo — quando se começa a falar de negociações para paz — pois narra de uma forma direta e sincera, como após a invasão russa, as escolas na Ucrânia continuam a funcionar. E como alunos e professores se esforçam e se conseguiram adaptar aos tempos de guerra.
Há por aqui quem fale que “Timestamp”, o penúltimo filme apresentado a concurso pode fazer frente a “Blue Moon”, de Richard Linklater, considerado até agora o favorito, ao Urso de Ouro 2025, — que será entregue este sábado ao final da tarde — se tivermos inclusive em conta a habitual conotação política do Festival de Berlim.
Nada é normal num país que está mobilizado para a guerra e Gornostai revela-nos em “Timestamp” e com grande mestria, as diferentes maneiras como os ucranianos, se adaptaram de uma forma positiva às condições terríveis, desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, em fevereiro de 2022.
“Timestamp”… Sem imagens de guerra
É curioso que quando se imagina um documentário sobre a Guerra da Ucrânia pensa-se imediatamente em imagens de guerra, com prédios destruídos pelos mísseis ou drones, cenas de sangue, coragem e glória, como muitas vezes temos visto, infelizmente nos nossos telejornais.
Porém, neste conflito entre a Rússia e a Ucrânia — algo que aliás, também não se tem falado muito, para criar mais dramatizo informativo e logo mais audiências — a devastação e destruição, não acontecem em todo o país. Há linhas da frente da invasão russa e campos de batalha estabelecidos, há zonas de proteção e áreas que até foram temporariamente evacuadas e que já recuperaram a sua vida (quase) normal. Enquanto isso, o resto do país tenta andar para a frente com a maior normalidade possível: os idosos ficam em casa, os adultos trabalham e naturalmente as crianças e os jovens continuam ir para a escola.
Um sistema de ensino bem estruturado
O foco de “Timestamp” (Strichka Chasu), de Kateryna Gornostai, é precisamente mostrar-nos como o bem estruturado sistema educacional da Ucrânia, tem conseguido funcionar quase em pleno — obviamente com certas limitações — à invasão em grande escala, sem que os estudantes sejam prejudicados, no seu desenvolvimento escolar.
O documentário captura cenas da vida escolar em todos os níveis de ensino, desde as crianças do jardim de infância, até aos finalistas do ensino médio; e destaca-se sobretudo porque mostra a resiliência desses mesmos alunos, que continuam a estudar, a aprender e a preparar-se, enquanto seu país está em guerra; ao mesmo tempo que os professores com grande imaginação e pedagogia, tentam tirar o máximo proveito dessa situação catastrófica, motivando os seus alunos a ir mais longe e mostrando-lhes de que a vida tem de continuar.
“Timestamp”: Um olhar sincero e direto
Evitando as clássicas entrevistas ao estilo ‘cabeças-falantes’, as imagens de arquivo, ou as reportagens de notícias, a abordagem de Gornostai faz lembrar os documentários de Frederick Wiseman ou de outros grandes documentaristas, que procuram muito mais mostrar do que contar.
Enquanto os títulos no ecrã detalham os nomes das cidades e regiões e as suas respectivas distâncias à frente de combate e às zonas invadidas,“Timestamp” vai mergulhando-nos em vários cenários, observando crianças de diferentes idades, fazendo as coisas que tendem a fazer na escola: estudar, brincar, aprender, sair ou mesmo ficarem aborrecidas, com as tarefas escolares.
Uma escola pouco convencional
As aulas mais próximas das linhas de batalha são ministradas via Zoom, enquanto as mais distantes, podem continuar como antes, embora muitas vezes sejam interrompidas por sirenes de um possível ataque aéreo que levam todos para um abrigo no subsolo. Há mesmo uma sequência, em que um jovem professor de arte, transformou o abrigo subterrâneo, num colorido estúdio para alunos aprenderem a pintar e desenhar. Em outro lugar, uma plataforma inteira do Metro, foi transformada numa escola improvisada, com todo o equipamento necessário e completo, à actividade escolar: quadros-negros, carteiras e material didático.
A memória curta da crianças
Como a guerra já dura tanto tempo, as crianças parecem invariavelmente imperturbáveis, embora de vez em quando nos concentremos em uma ou outra criança que claramente parece traumatizada, enquanto outras brincam ou interagem com a câmera como se não fosse nada. Há efetivamente um cena inesquecível e bastante comovente, de uma garotinha que vai até a biblioteca da escola, para uma sessão de leitura e chora ao ver uma fotografia de seu pai morto ao lado de vários retratos de outros soldados abatidos em combate. E, no entanto, minutos depois, a pequena já conseguiu escolher um livro e começar a trabalhar, na sua leitura.
“Timestamp” revela ainda muitas outras coisas durante suas duas cativantes horas, e uma delas é que as crianças — mesmo aquelas que passaram pelo inferno da guerra — têm felizmente uma memória curta, que as ajuda a continuar e a ir em frente.
O futuro dos adolescentes
Quanto aos adolescentes, estão a crescer num país devastado pela guerra, onde podem sobretudo os rapazes a serem os próximos na fila para o recrutamento. Assim, os estudantes do ensino médio (rapazes e raparigas) aprendem também a disparar, com pistolas de pressão de ar ou mesmo os primeiros socorros, como aplicar torniquetes em ferimentos — o título do filme refere-se a um registo de tempo que se mede por quanto tempo o tecido humano foi privado de sangue — e muitos veem um futuro no qual podem estar um dia lutando contra si próprios.
Ao mesmo tempo, tentam ser e viver como qualquer adolescente, fazendo vídeos para o TikTok com amigos ou praticando aulas de dança para a cerimónia de formatura, um momento de grande apogeu cinematográfico e que encerra o filme.
Uma banda sonora épica
Kateryna Gornostai e o diretor de fotografia Oleksandr Roshchyn capturam esses momentos de aprendizagem em grandes planos graciosamente compostos, cheios de corpos jovens, sejam crianças em idade pré-escolar correndo para um abrigo antiaéreo ou adolescentes jogando basquete num ginásio que foi parcialmente destruído.
A banda sonora orquestral e coral de Alexey Shmurak, adiciona ainda uma qualidade épica às imagens do filme, quase como se estivéssemos assistindo ao nascimento de uma nova nação surgida das cinzas e destruição.
Um evidente patriotismo
De fato, há um aspecto patriótico — prefiro ao nacionalista, que tem uma conotação negativa do ponto de vista político e que não é isso que o filme quer mostrar — inquestionável em “Timestamp”, fomentado por cenas de estudantes cantando hinos patrióticos ou saudando os mortos durante momentos de silêncio; assim como nas lições e nas mensagens que alguns dos professores transmitem sobre os muito ucranianos que vão resistindo bravamente aos invasores russos. O mesmo deve acontecer no lado oposto?
“Timestamp” é um olhar de esperança no futuro
Esse patriotismo, goste-se ou não, é obviamente uma outra faceta de um longo e devastador conflito que alterou tantas vidas, quando não as destruiu completamente. E ainda assim “Timestamp”, consegue ser um retrato absorvente e muito diferente daquilo que estamos habituados a ouvir sobre a Ucrânia. Em última análise, o filme de Kateryna Gornostai traz-nos uma esperança: a resiliência destas crianças e jovens que continuam a preparar-se para o futuro, apesar das circunstâncias terríveis, e de um tempo em que de facto não têm outra alternativa.
Curioso para ver “Timestamp”? O que pensas desta obra?