Together – Análise
Marido e mulher na vida real, Dave Franco e Alison Brie protagonizam um body horror de intimidades extremadas em “Together.” Juntos, os atores ultrapassam as fronteiras da proximidade emocional e física, da co-dependência e do bom gosto. Tudo sob a direção de Michael Shanks, que levou o filme ao Festival de Sundance e lá recebeu muito aplauso, tanto do público como da crítica americana.
De todos os subgéneros do terror, o “body horror” será aquele mais dado ao solipsismo, forçando a figura fictícia a considerar a materialidade do seu corpo ao mesmo tempo que proporciona a autorreflexão do espectador pelo meio do choque, do nojo, do medo. Por isso, é norma estas histórias se focarem num só protagonista de carne transmutada em mortificações progressivas. Temos muitos exemplos de Cronenberg, as provocações de Ducournau, a humanidade feita máquina de Tsukamoto, o fetiche de Clive Barker e tantos outros pesadelos em gradações de celulóide e sangue falso.
Ou se impõe essa singularidade ou se propõem duplas em que cada interveniente se reflete um ao outro à medida que se transformam em algo monstruoso. Pensem nos dois lados de Elisabeth Sparkle na “Substância” ou nos gémeos cirurgiões de “Dead Ringers.” Em ambos os casos, um tornam-se dois ou dois tornam-se um e o horror depende dessa mesma transição. Por outras palavras, mesmo quando há dois corpos em cena, o estudo de personagem move-se segundo a presunção de uma unidade. “Together” torna esta dinâmica num movimento bem literal, justapondo a imagética horripilante com uma história de amor tóxico.
Together: O amor segundo Platão vira body horror.
Para Tim e Millie, o princípio do fim é a festa de despedida na qual dizem adeus aos amigos de longa data e um pedido de casamento vira humilhação quando o noivo hesita em dizer sim. A relação já dura há anos e a chama da paixão há muito esmoreceu, dando lugar às labaredas da irritação miúda. Eles parecem ficar juntos por obrigação, porque é assim que as coisas se fazem no seu meio social e nenhum dos dois saberia o que fazer se, de repente, se encontrassem solteiros. Pelo menos, esse será o caso do homem cuja psique se deixa atormentar pela morte recente dos pais e a descoberta macabra do seu fado.
A imagem é invocada uma só vez em “Together,” mas ecoa na imaginação do espetador muito além dos créditos finais. Acontece em flashback narrado, a lembrança de um filho que se guia pelo nariz. Segue o cheiro da podridão até ao quarto dos pais e nele encontra a mãe, enlouquecida pela perda e em renegação tanto do luto como da realidade. Ela sorria demente enquanto, ao lado, o cadáver do marido derretia decomposto nos lençóis. Nenhum outro quadro no filme marca tanto quanto este, sua proximidade do real tão mais perturbador que o tormento sobrenatural que se abate sobre Tim e Millie.
Certo dia, no arvoredo junto à nova casa, os noivos dessatisfeitos veem-se vítimas de uma tempestade e acabam por cair num buraco. Presos debaixo da terra enquanto a chuva perdura, eles passam a noite numa gruta de superfícies pegajosas, paredes esculpidas em formas estranhas, algures entre o templo religioso e um organismo alienígena. Mesmo quando regressados ao lar, salvos da tormenta, as influências da caverna provam-se difíceis de escapar. Essas nefastas magias tornam homem e mulher em ímanes de atração fortíssima e, cada vez que se tocam, é como se a carne se quisesse aglutinar.
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O descolar é cada vez mais doloroso e, ao fim de umas noites, nem a cética Millie consegue negar aquilo que Tim depressa descobriu – algum poder sobrenatural os condenou à fusão, a obliteração do “nós” para que se crie um novo e único “eu.” Segundo as palavras cultistas de um colega dela, a situação é mais virtude que desgraça, possibilitando o retorno a um ideal aristofânico definido no “Simpósio” de Platão. Só que, aos olhos da câmara, nenhuma dessa benesse trespassa, ficando só o horror da pele que derrete no ponto de contacto, dos músculos que se convulsam na procura do amante, das psicologias desfeitas em prol da ditadura do físico.
Atores casados, par disfuncional em cena.
Oxalá o realizador-argumentista Michael Shanks soubesse aproveitar as atrações e repugnas primordiais que esta premissa invoca. Infelizmente, “Together” fica sempre aquém do seu máximo potencial, desperdiçando muitas cenas com más escolhas formais. O privilégio do grande plano e do médio que centram a expressão facial dos atores significa que a comunhão dos corpos se perde na linguagem visual. As escolhas musicais tombam no cliché e sabotam os píncaros sentimentais do conto, especialmente o momento em que os dois protagonistas sucumbem ao destino que lhes foi traçado desde o momento em que caíram naquela cova enigmática.
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Verifico uma discrepância semelhante entre o potencial e a forma final destas ideias no trabalho dos atores. Alison Brie e Dave Franco são casados na vida real e aqui se encontram na vida simulada do grande ecrã, quiçá na tentativa de projetar a química do seu matrimónio na ficção de Millie e Tim. É uma alquimia estranha, pois o namoro em cena está podre e moribundo, aguentando-se primeiro pelo hábito e depois pelo efeito fantástico da caverna. Suponho que a fricção inerente a tais contrastes poderia resultar num fenómeno dramatúrgico com algum interesse. Mas, o que acontece em “Together” é disfunção plena, paradoxo sem proveito.
Não ajuda que Brie é muito melhor como Millie do que Franco no papel de Tim. Quando a fita cai em espirais de repetição, ela consegue evitar a redundância ao abordar cada cena com estratégias distintas. Ele, por outro lado, chega a um ponto em que todo o momento se ataca da mesma forma, sempre com gritos roucos e a histeria masculina que arrasa a nuance e mata o drama. “Together” é o tipo de terror onde o susto não se provoca e, em compensação, se procura o lado mais perturbador do género. Se essa qualidade ainda surge no retrato de Brie, está ausente em Franco cuja única mais-valia é quão disposto está a dar o corpo ao manifesto e deixar-se erotizar enquanto Shanks e companhia o chacinam.
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Together
Conclusão:
- Depois de controversas acusações de plágio e muito furor sobre a colaboração de Alison Brie e Dave Franco numa narrativa tão sórdida, “Together” é um relativo desapontamento. Michael Shanks concebeu uma premissa interessante, mas não a soube aproveitar, nem enquanto argumentista nem como realizador. O desleixe com que filma os horrores dos corpos fundidos é especialmente frustrante, prejudicando até o modo como o espectador poderá apreciar os efeitos.
- A equipa de maquilhagem fica de parabéns, apesar de tudo. E os efeitos práticos também vingam, como quando se vislumbra o potencial fado dos protagonistas se continuarem a resistir a transformação que tornará o casal num organismo único, singularizado por vias sobrenaturais.
- Também haverá muito a prezar no trabalho de Brie. Franco, por seu lado, deixa muito a desejar, sendo só uma mais-valia enquanto corpo predisposto a ser explorado por uma câmara salaz.