Tokyo Vice © HBO Max

Tokyo Vice minissérie, primeiras impressões

Tokyo Vice” é uma composição de poesia audiovisual, que nos leva a palpitar até ao ninho criminoso dos Yakuza. Michael Mann dirige o episódio piloto com aquela sua estética altamente sedutora carregada de atrevimento e intensidade, que Ansel Elgort espelha vigorosamente ao lado de Ken Watanabe.

Não há sombra de duvida que os dramas criminais são o pão nosso de cada dia, seja em formato televisivo ou cinematográfico, mas a verdade é que escasseiam produções ocidentais capazes de escrutinar a temática do crime organizado nipónico como “Tokyo Vice”, o que é bastante revelador da opacidade cultural desse país. Mais recentemente o filme “O Forasteiro” com Jared Leto conseguiu extrapolar um pouco mais acerca dessa temível organização mito que são os Yakuza, cuja identidade tem sido indiscretamente mais difundida no formato dos videojogos. E é precisamente pelos tabus dessa civilização milenar, que o argumento de J.T. Rogers (Oslo) vai desfolhando vagamente pelas memórias reais do escritor e repórter criminal Jake Adelstein, com Ansel Elgort a preencher os devaneios desses pensamentos, enquanto se estabelece na capital com o fardo persecutório de ser o único imigrante branco alguma vez admitido numa redação de jornal. Sem tempo para rodeios, começamos logo a sorver os espicaçantes ditames imagéticos que Mann extrai do garrido cenário de um hotel no coração de Tóquio, como rito da prolepse introdutória do acontecimento principal. Aqui, a sua câmara documentarista empoleira-se para extorquir do aprumado Jake, todo o impacto da sua reação corporal e da sua dicção japonesa imaculada, secundarizando a presença sempre respeitável do inspetor Hiroto Katarigi (Ken Watanabe), que se limita a acompanhá-lo num encontro nada amistoso com o número dois da Yakuza, por conta de uma reportagem indesejável.

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Assim, os primeiros instantes atingem-nos irremediavelmente com uma tensão subliminar inesquecível, própria da ardilosa montagem cénica de Mann, que adora convidar o cenário envolvente a transformar-se numa aguarela de emoções à flor da pele. Lançado esse gancho que nos compele a permanecer ligados à história de Jake, recuamos dois anos na cronologia dos eventos para a origem de toda a querela, aonde entramos com ele na azáfama da cidade com uma batida inquietante, marcada pela passagem na icónica interseção de Shibuya. Em poucos minutos, Mann passeia-nos pelo dia-a-dia de Jake e dá-nos a cheirar visualmente os aromas mais pedestres, que nos conduzem para os becos mais ilustres e boémios com uma potência sensorial inebriante, tal como já tínhamos experienciado em “Miami Vice”. Contudo, “Tokyo Vice” não se fica apenas por uma confissão exacerbada do seu lado intrinsecamente ilícito e pecaminoso, adensa igualmente o simbolismo do que é ser um expatriado indesejado, o tal “gaijin” de uma sociedade ainda demasiado virada para si mesma. Numa cena deveras impactante, Jake comparece a uma avaliação de admissão ao fictício jornal Meicho Shimbun, e é o único estrangeiro numa sala com uma centena de candidatos japoneses.

Tokyo Vice Corpo
Tokyo Vice © HBO Max

A esse propósito, a questão racial é um tema fulcral da narrativa inflamatória de Rogers, basta ver como Jake é inquirido pelos desconfiados diretores do jornal acerca da sua etnia judaica, e se lhe é permitido comer sushi, para além da assunção de considerarem os judeus os donos da economia mundial. Mas o enredo não se fica pela segregação social inerente a Jake, aborda pertinentemente a condição servil da mulher japonesa, sobretudo da que preside a redação afeta a Jake. Estamos a falar da Eimi (Rinko Kikuchi) – uma chefia com uma atitude severa e chauvinista, que a própria Kikuchi desmascara ao dizer que “as mulheres japonesas poderiam usar a sua feminilidade como arma num ambiente de trabalho dominado por homens”. Mas logo aqui, Jake depara-se com uma forma de fazer jornalismo nada convencional, ao perceber que o formato do conteúdo editorial não privilegia o motivo, algo que o levará a investigar à revelia do jornal um alegado homicídio que carece de justificação plausível, porque sem haver testemunhas, é mais uma omissão a favorecer o ranking da criminalidade. Na sua passagem pelo Japão nos anos 90, o verdadeiro Jake revela nos seus escritos como expôs o cabecilha da Yakuza (Tadamasa Goto), vulgarmente associado ao Gotti da família Gambino, numa altura em que este sindicato mafioso era respeitado e até celebrado pelo povo japonês.

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Deste modo, é num periclitante clima de coragem e suspeição, que Jake vai desvendando as verdades aterradoras de uma cultura permeabilizada por uma miríade de códigos arcaicos assentes num secretismo cortês como refere Mann, que tem esta habilidade superior em tricotar a filmagem digital numa multitude de recortes intimistas audíveis sem voz. É nessas conversações imagéticas que, para já, conseguimos sentir o pulso da personagem policial interpretada por Watanabe, que na verdade é inspirada em Chiaki Sekiguchi – um detetive que ajudou Jake na sua cruzada pelo submundo criminal, e serviu de seu mentor. E é precisamente essa realidade marginal de Tóquio que nos crava os seus dentes com uma decadência noir de texturas e sensações eletrizantes, que só Mann consegue alquimiar num eufórico cocktail de luzes insinuantes e sombras provocadoras. Assim faz ele da noite, uma montra ainda mais empinocada para os estímulos primitivos e os impulsos imprevisíveis saltarem do varão dos “host clubs” de Kabuchiko para o ecrã, que Elgort emulsiona com o maior savoir-fair, enquanto o seu Jake distribui “flirts” ambíguos e conversa sobre trabalho com o seu bem experimentado e bem relacionado colega sénior Miyamoto-san (Hideaki Itô).

Tokyo Vice Corpo
Tokyo Vice © HBO Max

Obviamente que numa fase tão prematura, o “character building” ainda se encontra em ramo verde, embora já se consiga identificar em Jake uma dimensão psicológica vocacionada para transpor zonas proibidas, que ativam os seus atributos de uma forma camaleónica na toca do inimigo, sem acedermos a uma vertente mais sentimental, com a trama a querer expandir-se para além da sua persona. Curiosamente, Adelstein confessou ao “The New Yorker” já ter ultrapassado vários limites éticos que o levaram a dormir com fontes, a fazer negociações chantagistas, a vasculhar caixotes do lixo por provas, e a obter informação proveniente do crime organizado e forças anti-sociais, por isso veremos até onde chegará o Jake ficcional. É pena que Michael Mann não dirija os restantes episódios e se tenha ficado unicamente pela direção deste estrondoso piloto, mas se esta for a métrica para o que aí vem, então podemos estar na presença de uma pequena obra-prima.

Já podem visualizar os três primeiros episódios de “Tokyo Vice” na plataforma da HBO Max!

Miguel Simão

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