Tully

Tully, em análise

Em “Tully”, Charlize Theron, a argumentista Diablo Cody e o realizador Jason Reitman retratam, com poderosa autenticidade e muita maturidade, a angústia de uma mãe exausta.

Filmes sobre questões de gravidez, o conceito e realidade de se ser mãe são incrivelmente raros. Por muito estranho que pareça, é no cinema de terror que se encontram a maioria dos projetos do grande ecrã dispostos a lidar com tais ideias, usualmente servindo-se delas para a exploração de inseguranças e medos quase primordiais do ser humano. Por isso mesmo, “Tully” é uma raridade que deve ser celebrada. Afinal, é uma comédia dramática capaz de retratar, com estonteante franqueza, as angústias de uma mãe através das últimas semanas da gravidez e sua subsequente confrontação com as provações de cuidar de três filhos ao mesmo tempo que se debate com dúvidas e receios que afetam provavelmente todos aqueles que chegam à idade adulta, quer sejam pais ou não.

“Tully” é também a terceira colaboração entre o realizador Jason Reitman e a argumentista Diablo Cody. Tal como em “Juno” e “Jovem Adulta”, a narrativa foca-se numa mulher a enfrentar um período de transição ou mudança na sua vida para a qual não está preparada. Neste caso, a protagonista é Marlo, mãe de dois à espera do nascimento do terceiro membro da sua prole. Ela e seu marido, Drew, já estão na casa dos 40 e, pelas suas conversas, é óbvio que Marlo sofreu um caso de depressão pós-parto com o nascimento do segundo filho, Jonah, que agora dá muitas preocupações ao casal devido ao seu comportamento atípico. Para além dos filhos e marido, a pessoa mais importante na vida de Marlo é o seu irmão, Craig, que alcançou sucesso e vive com todas as mordomias que a fortuna pode comprar, em grande contraste com a precariedade de classe-média sentida pela irmã.

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Charlize Theron é estupenda a retratar uma mulher nos extremos da exaustão física e mental.

Independentemente do cisma económico que separa os dois irmãos, é óbvio que Craig se preocupa com Marlo, pelo que, como presente a celebrar o nascimento do terceiro filho da irmã, ele oferece-se para lhe pagar os serviços de uma ama noturna, para que Marlo possa dormir e não passar as noites a cuidar do recém-nascido. Habituada a olhar com desdém para os excessos do irmão, Marlo mostra-se inicialmente relutante em aceitar a oferta. No entanto, depois da bebé nascer e ela ser mergulhada num poço sem fundo de exaustão, noites em branco e stress doméstico, acaba por telefonar à ama. Nessa noite, uma jovem risonha chamada Tully aparece à porta e, nas semanas seguintes, é como se Marlo renascesse, com mais energia e calma emocional, graças ao apoio dessa mulher mais nova cujas semelhanças para com Marlo no auge da sua juventude são um tanto ou quanto suspeitas.

Não querendo revelar mais detalhes importantes do enredo, resta dizer que “Tully” é um dos melhores trabalhos de Diablo Cody. As suas observações sobre a vida das personagens que conjurou tendem a transmitir uma ideia de vivência e autenticidade rara no cinema americano, especialmente quando incidem nas provações de se ser uma mãe nos nossos dias, onde a performance social de maternidade vai ganhando cada vez mais importância. O modo como estabelece as dinâmicas domésticas da unidade familiar de Marlo merece particular admiração. Veja-se, por exemplo, como Cody nos apresenta certos tiques e hábitos de Drew que não são pouco irritantes, mas nunca sublinha a reação de Marlo, sugerindo como ela já se habituou a essas facetas meio aborrecidas do seu esposo ao longo dos anos a viver juntos.

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Em “Tully”, Cody revela o seu gosto por falas cómicas e jogos de palavras meio inusitados, mas, no que diz respeito à construção das personagens e desenvolvimento dos temas principais, a argumentista privilegia sempre a reação e ação das figuras humanas em detrimento de grandes blocos de diálogo. Tudo isso dá um toque de maturidade e observação humanista ao filme, especialmente quando este começa a explorar mais a sério as angústias de uma mulher que, como todos nós, ocasionalmente olha para o passado e se indaga se a sua vida não podia ter ido por outro caminho, talvez com um destino melhor. O melhor de tudo é que tais ponderações não fedem com a indulgência de uma crise de meia-idade e inclusive dão aso a conclusões surpreendentemente esperançosas. Este é um texto de complicada humanidade, mas essa complexidade não se manifesta propriamente numa visão deprimente e desesperante da vida.

Pelo que lhe compete, Reitman filma “Tully” sem grande aparato ou exemplo de vistoso formalismo. Pintando o filme em tons calorosos que remetem para um sentimento, por vezes irónico, de conforto doméstico, o realizador deixa-se levar pelos ditames estandardizados do cinema independente americano e usa e abusa de câmara ao ombro, mesmo quando isso não faz sentido estético para a cena em questão. Mesmo assim, ele ainda consegue evidenciar alguns momentos de surpreendente graciosidade formal, como na abertura do filme, onde um ritual entre mãe e filho torna-se algo quase etéreo, e nas montagens que exploram a progressiva exaustão da sua protagonista.

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Descontando a reviravolta final, este é talvez o melhor trabalho de Diablo Cody em cinema.

É evidente, conduto que, não obstante o bom trabalho de Cody, Reitman e companhia limitada, “Tully” é, acima de tudo, um filme de Charlize Theron. A atriz sul-africana já tinha, em “Jovem Adulta”, dado gloriosa vida a uma das criações conjuntas deste duo de argumentista e realizador e aqui volta a repetir a proeza. Parte da magnificência do seu trabalho diz respeito à fisicalidade que Theron traz ao papel. Quando muitas atrizes se focariam na expressão vocal e facial das mágoas de Marlo, Theron dá tanta ou mais importância à sua postura e linguagem corporal, delineando um retrato visceralmente poderoso de uma mulher levada aos extremos da exaustão. A certa altura, Marlo está num estado tal que parece incapaz de pensar e, enquanto espectador, entendemos que a sua resignação cansada só não explode em gritos de desespero porque isso necessitaria de energia que ela não tem.

Seria fácil vermos esta história como algo próximo de um estudo de personagem dentro de um modelo de horror psicológico, mas a atriz lá vai encontrando humor em momentos facilmente representados como tortuosos e trazendo uma vitalidade humana a todo o projeto. O florescimento gradual de Marlo depois da atenção e ajuda de Tully é talvez o gesto mais hipnotizante do filme, sendo que a química entre Theron e Mackenzie Davis no papel da mulher mais nova também é estupendamente palpável e emocionalmente complexa. Enfim, toda essa glória interpretativa e fabuloso arco emocional acabam por ser traídos por uma revelação que “Tully” guarda para o seu clímax e que é completamente incoerente tanto a nível de tom, como do trabalho dos atores. É um passo em falso muito grave, mas não o suficiente para apagar toda a glória do filme que o precedeu ou mesmo a modesta elegância da sua derradeira e muito comovente imagem.

 

Tully, em análise

Movie title: Tully

Date published: 20 de June de 2018

Director(s): Jason Reitman

Actor(s): Charlize Theron, Mackenzie Davis, Ron Livingston, Mark Duplass, Elaine Tan, Asher Miles Fallica, Lia Frankland, Gameela Wright

Genre: Comédia, Drama, 2018, 95 min

  • Cláudio Alves - 80
  • Rui Ribeiro - 90
  • José Vieira Mendes - 70
  • Daniel Rodrigues - 75
  • Maggie Silva - 85
80

CONCLUSÃO

Não obstante uma reviravolta final desastrosa, “Tully” é um poderoso retrato de personagem, elevado pelo texto exemplar de Diablo Cody e a prestação titânica de Charlize Theron.

O MELHOR:
Charlize Theron que, se houvesse justiça no mundo, estaria já a caminho de mais uma nomeação para o Óscar.

O PIOR: O final, assim como algumas bizarras escolhas de casting. É bem fácil acreditar que Mark Duplass, que interpreta Craig, é irmão de Ron Livingston, no papel de Drew. Agora, crer que Duplass e Theron são fruto do mesmo casal já pede muita suspensão de incredulidade por parte do espetador.

CA

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