Um Domingo Interminável, a Crítica | O cinema italiano aplaudido no Festival de Veneza
Enrico Bassetti, Federica Valentini e Zackary Delmas dão corpo a “Um Domingo Interminável”, o drama italiano de Alain Parroni.
Em certos casos, nada como dar a palavra aos autores dos filmes. Por isso mesmo, no parágrafo de abertura desta análise crítica reproduzo a Nota de Intenções do realizador e co-argumentista da obra que me ocupou a atenção esta semana, “Una Sterminata Domenica” (Um Domingo Interminável), 2023, primeira longa-metragem de Alain Parroni, produzida com a caução do veterano alemão, Wim Wenders: “Para a minha geração, narrar a adolescência e a nossa entrada na idade adulta é uma questão de linguagem. Contar a realidade em 2023 é um acto terno e pesado que implica lidar com as profundas ambiguidades, estereótipos e contradições da sociedade mediática em que crescemos”.
Uma Via Sacra e Profana Para o Vazio, Sem Presente e Sem Futuro
“Estamos contaminados, bombardeados por um refluxo de citações, uma aglomeração de imagens, uma simultaneidade de informações e emoções provenientes do cinema, da internet e da fotografia de massas. Com o meu primeiro filme, espero levar o espectador a questionar as diferentes perspectivas e experiências colectivas que moldam a nossa visão do mundo. Cresci no campo, a 32 quilómetros de uma das cidades mais antigas do mundo, Roma, inundado por filmes de Hollywood, música pop e anime japonês exibido nas estações de TV generalistas, bem como por filmes de autores desconhecidos descarregados de servidores remotos. Oferecer um olhar honesto exige questionar as linguagens e os meios de comunicação que as novas gerações estão a utilizar, bem como os seus valores relativamente ao mundo que as rodeiam. Para mim, Alex, Brenda e Kevin são a encarnação de um sonho de um adolescente ansioso que adormece com o smartphone na mão, em frente a uma televisão estridente”.
Mas as intenções, por si só, não fazem filmes e o que devemos considerar sempre em primeiro lugar são os resultados do investimento criativo que se podem observar no interior das quatro linhas do enquadramento. E aí, sim, a coisa muda de figura. Para construir a estrutura na qual assenta esta sacra e profana “aventura” de um grupo de jovens mergulhados no amargo “fare niente” (aqui não encontramos o “dolce” em lado nenhum) dos campos que circundam as casas onde vivem, bairros deprimidos e deprimentes onde subsiste uma simbiose explosiva de lumpen-proletariado com restos dispersos de uma pequena-burguesia remediada, não longe do litoral e das rotinas estivais da praia pública, a realização ergueu uma plataforma onde deixou as personagens que elegeu perdidas num vórtice de comportamentos pouco recomendáveis, sobretudo quando eles avançam para fugazes visitas a Roma ao encontro da ilusória vertigem da cidade eterna. No fundo, ao encontro de algo que está nos antípodas da sua parca existência. Movimentos em falso que acabam por ir confrontar um outro vazio, a juntar ao seu primitivo vazio existencial. Não por acaso, imagens e sons do limitado espaço do Vaticano, e não apenas das ruas da grande cidade e capital de Itália, ecoam na banda sonora e visual. Mas neste caso o mundo material não se compatibiliza com o espiritual.
Quando o Mundo Esbarra com o Nada…!
Para dar corpo e alma ao processo narrativo, Alain Parroni procura salientar desde cedo, sem fazer grandes juízos de valor, as idiossincrasias próprias de um grupo de delinquentes: dois rapazes, Alex, o mais velho e aparentemente mais determinado a mudar de rumo, interpretado por Enrico Bassetti, o mais novo, Kevin (Zackari Delmas), e uma rapariga, Brenda (Federica Valentini), namorada de Alex que parece ligeiramente mais velha, apesar de não o ser. Todos eles parecem viver para o presente sem preocupações de maior quanto ao futuro, reféns dessa noção de um domingo interminável que não faz sequer vislumbrar a perspectiva do dia seguinte.
Todavia, há algo que os preocupa e atormenta: o medo de envelhecerem. Para eles, a vida parece não fazer sentido quando se atinge uma certa idade mas, contradição suprema, ser velho não constitui o processo natural de quem possui a capacidade de olhar para o passado e julgar o bom e o mau da condição humana, porque na velocidade a que querem viver não são capazes de elaborar o mínimo pensamento retrospectivo. Diríamos que a única luz a que se agarram através do caminho que desejam ou não percorrer é a dos smartphones, o fogo fátuo dos ecrãs da pseudo-modernidade que faz deles prisioneiros de um universo de recorrente futilidade e do quase absoluto nada.
“uma nova esperança feita de uma nova, complexa e frágil inocência”
Trata-se de um filme difícil de encarar pelo lado da empatia para com as personagens descritas, e as outras que com eles se cruzam não ajudam muito a apaziguar a nossa rejeição por aquilo que são e por aquilo que representam. Estamos a falar da rejeição ficcional das personagens, não da prestação dos actores, essa sim, digna de nota máxima, e só ela justifica a atribuição dos meus 50 pontos numéricos ou, se preferirem, duas estrelas e meia.
Para o final, “Um Domingo Interminável” empurra os acontecimentos vividos pelos jovens protagonistas, nomeadamente quando aquilo que sabemos e não sabemos sobre a gravidez de Brenda gera um dos principais e mais fortes conflitos dramáticos, a ruptura entre Alex e Kevin. No limite, no ecrã passamos a ver uma outra vertigem feita de experimentalismo cinético que nem sempre cumpre a função de desassossegar o espectador, e o filme só ganha nesta fase quando regressa ao registo mais sereno do início. Para a história do grupo de adolescentes fica-nos então na memória o grito impotente de Kevin a pedir ajuda no meio de uma circular onde os automobilistas parados num “vulgar” engarrafamento romano nem sequer se dão conta de que ali mesmo, no meio do caos, estava a nascer uma nova vida, uma nova esperança feita de uma nova, complexa e frágil inocência. Resta saber por quem será aproveitada essa oportunidade de redenção.
Um Domingo Interminável, a Crítica
Movie title: Una sterminata domenica
Director(s): Alain Parroni
Actor(s): Enrico Bassetti, Zackary Delmas, Federica Valentini, Lars Rudolph
Genre: Drama, 2023, 110min
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João Garção Borges - 50
Conclusão:
PRÓS: Foi exibido no Festival de Veneza de 2023, onde recebeu o Prémio da FIPRESCI (Federação Internacional da Imprensa Cinematográfica), e o Prémio Especial do Júri da secção Orizzonti.
CONTRA: Neste Verão em que o mais importante acontecimento cinéfilo se intitula “Grande Retrospectiva Ingmar Bergman”, iniciativa da Leopardo Filmes e ciclo de obras de visão imprescindível, onde se incluem inequívocas obras-primas da sétima arte, este mais singelo mas interessante “Una Sterminata Domenica” (distribuído pela Risi Film) arrisca-se a ficar na sombra. Aqui fica a nota solidária para quem o queira descobrir e saber mais sobre o mais recente cinema italiano, para já no Cinema Fernando Lopes (Lisboa) e na Casa do Cinema (Coimbra).