Dias Perfeitos, a Crítica | Uma marcante aposta do cineasta Wim Wenders
“Dias Perfeitos” é a premiada nova obra do cineasta Wim Wenders, protagonizada pelo talentoso Kôji Yakusho!
Proponho-vos por brevíssimos momentos que esqueçam o que a ciência e a astrofísica revelaram nas últimas décadas, como a Teoria do Big Bang, e que ao invés recordemos narrativas antigas sobre a origem do universo. Pois bem, se na génese do cosmos Deus, e muito provavelmente o Diabo, deixassem de lado as suas diferenças e não andassem aos pontapés e bofetadas um ao outro, podia ser que o mundo em que vivemos, quem sabe o próprio universo em expansão a que pertencemos, qual ínfima partícula perdida no espaço, fosse um lugar muito mais interessante. Naturalmente, para que as coisas funcionassem, podiam e deviam ser outros os conceitos existenciais. Dou-vos alguns exemplos: Não haveria paz, muito simplesmente porque a guerra seria algo inimaginável. Não haveria doenças nem pandemias que dessem cabo das nossas agendas e limitassem a nossa liberdade individual ou colectiva. Haveria morte? Não, a não ser a pedido e por razões muito pessoais ou de carácter filosófico.
UM HOMEM ESPIRITUAL NUMA CIDADE CADA VEZ MAIS MATERIAL
Não haveria fome, porque não seria necessário consumir alimentos nem lutar por uma simples migalha de pão como muitos hoje fazem e, acto contínuo, não haveria necessidade de satisfazer as nossas necessidades básicas numa rotina higiénica que resulta das nossas igualmente básicas e rotineiras funções biológicas. Nesse mundo, digamos, quase perfeito, um mundo hedonista em que os cidadãos pudessem dedicar-se a uma plena contemplação da vida que passaria pela valorização das artes e das letras e pelo mais agudo e profundo pensamento humanista, o protagonista de “Perfect Days” (“Dias Perfeitos”), 2023, realizado por Wim Wenders, poderia encontrar sem dificuldade o seu santuário, o seu paraíso ao virar da esquina. Mas, como não há bela sem senão, seria obrigado a procurar outro emprego que não o de funcionário que, com paciente e aturada diligência, se dedicava a limpar casas de banho públicas da cidade de Tóquio. Em suma, não há mundos perfeitos. Resta saber se há “Dias Perfeitos”.
“Perfect Days”, o projecto fílmico, nasceu de um convite formulado a Wim Wenders pelo empresário Koji Yanai para que o realizador alemão imaginasse um conjunto de curtas-metragens sobre casas de banho públicas restauradas e intervencionadas com inovações arquitectónicas e uns laivos de arte de vanguarda, dezassete instalações integradas no chamado Tokyo Toilet Project. Dirão alguns com simpática bonomia que só no Japão se lembrariam de uma bizarria assim. Mas, bem vistas as coisas, porque não? Só que Wim Wenders e o seu co-argumentista, Takuma Takasaki, em vez de uma ou mais curtas decidiram inventar uma longa de 123 minutos em que um homem solitário, Hirayama (Kôji Yakusho), fosse confrontado não apenas com o seu imaculado zelo laboral mas, sobretudo, com a salvaguarda da sua identidade própria, dos seus gostos e das suas rotinas. Tudo pontuado pelo vai e vem dos caminhos percorridos dia após dia na zona circundante da sua modesta casa, pelos passeios ao longo do rio Sumida, onde se destaca a imponente silhueta da famosa Tokyo Skytree, e ainda pelos locais onde se concentram as referidas casas de banho, o bairro de Shibuya.
Das rotinas do nosso herói da limpeza, Wim Wenders dar-nos-á pano para mangas, e ainda sobra alguma coisa para uma manta de retalhos, um intrigante quilt nipónico. De manhã, Hirayama acorda ao som de uma senhora que no exterior varre as folhas caídas no chão. Entretanto, o protagonista arruma o colchão e as roupas da cama, desce as escadas e acerta o bigode, apara a barba com uma máquina, pulveriza as plantas que crescem em vasos numa espécie de estufa interior banhada por uma luz violeta, veste o macacão do serviço, recolhe as chaves, algumas moedas, uma máquina fotográfica (das que ainda usam negativo), e por fim ao sair de casa olha invariavelmente para o céu. Mais adiante vê-lo-emos olhar para o alto das copas das árvores que fotografa a preto e branco, nos mesmos cambiantes de negros e cinzentos dos sonhos concebidos como quadros animados do que cada noite percebemos serem a abstração das suas experiências diárias.
De volta para a palpável realidade, antes de entrar na carrinha onde guarda os utensílios laborais, vai a uma daquelas máquinas de vender bebida e comida que existem pelos quatro cantos das cidades japonesas, e não só, e retira uma lata com café. Depois, já no carro e comprovando o seu bom gosto musical e a obsessão pelo som analógico, ouve música a partir de velhinhas cassetes de áudio onde sobressaem nomes maiores do rock, da pop e da soul ocidentais como Lou Reed (não por acaso, intérprete da canção que dá nome ao filme, “Perfect Days”), Patti Smith, Janis Joplin, Otis Redding, Van Morrison ou Nina Simone. De noite, antes de adormecer, acrescenta ao bom gosto musical o literário e as suas leituras andam pelos domínios de um William Faulkner e de uma Patricia Highsmith.
Dito isto, a pergunta número um que se coloca a certa altura ao espectador que assiste ao filme, já perceberam qual vai ser: porque raio anda este homem a limpar retretes, chiques e de alto design mas, não obstante, retretes? Nomeadamente, porque partilha ele o seu emprego com um colega meio aluado e alucinado, que apetece mandar para um daqueles sítios onde ele não iria de boa vontade? Enfim, por que carga d’água aceita a presença da namorada do dito que parece ainda mais fora de si, vestida como uma Lolita das proto-eróticas manga? Porque será que qualquer cidadão meio excêntrico ou pasmado (como a mulher que com ele almoça num banco de jardim próximo do dele, sempre de olhar posto no infinito), o atrai mais do que o comum dos habitantes de uma cidade onde, em boa verdade, a maior parte vive num stress mais ou menos controlado? Será que Hirayama procura no meio deste mundo material de contrastes preservar as suas rotinas, que surgem assim como um porto seguro, a certeza de não ser incomodado nem surpreendido por quaisquer imponderáveis que destruam as suas preocupações espirituais, o seu universo interior?
Nos seus pormenorizados e longos minutos, “Dias Perfeitos” procurará responder a estas e outras interrogações, e fá-lo gerando aqui e além pequenos conflitos dramáticos consubstanciados em flagrantes da vida real que podem e, por vezes, acabam mesmo por interromper as rotinas por ele assumidas. Deste modo, um belo dia a jovem e singela sobrinha, Niko (Arisa Nakano), irá aparecer de surpresa para invadir na prática o espaço da casa e ocupar o quarto de Hirayama. Nada que o incomode, pelo menos na aparência, a não ser quando a irmã, Keiko (Yumi Asô), a mãe de Niko, vai buscar a filha num carro de luxo com motorista, algo que nos faz pensar que afinal Hirayama possui um passado que suspeitávamos existir em oposição aos condicionalismos do presente, pretérito se calhar imperfeito que na verdade nunca saberemos ao certo se foi ou não a razão que o levou a optar por aquela vida de asceta urbano. Mais significativa será, num plano de relacionamento mais casual, a relação com a dona de um bar, Mama (Sayuri Ishikawa), mulher madura que nitidamente nutre por ele um carinho especial.
No final, será por causa dela que se vai ver confrontado com uma suspeição do ex-marido que, para os devidos efeitos, não possui grande fundamento, ou mesmo nenhum. Mas isso não o impede de dar a volta por cima e acabar por encarar a situação com juvenil entusiasmo, quase como se fosse um divertido acidente de percurso. Contra as melhores expectactivas, Hirayama não só vive como um homem livre e independente como deseja continuar a sê-lo, o que na sua maneira de encarar o relacionamento humano com os outros passa por falar muito pouco, apenas o essencial, sempre no limite do necessário e só quando questionado de forma mais incisiva. Todavia, graças aos dotes de representação do actor Kôji Yakusho, a comunicação que estabelece passa por uma constante, sincera e eficaz metamorfose do seu rosto. Recorrendo a um olhar, a um sorriso, Hirayama procura comungar consigo próprio o futuro que escolheu, um dia, dois dias, vários dias perfeitos.
Dias Perfeitos, a Crítica
Movie title: Perfect Days
Director(s): Wim Wenders
Actor(s): Kôji Yakusho, Min Tanaka, Tokio Emoto, Arisa Nakano, Aoi Yamada, Yumi Asô, Tomokazu Miura
Genre: Drama, 2023, 119min
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João Garção Borges - 60
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Maggie Silva - 80
Conclusão:
PRÓS: Nada supera a prestação de Kôji Yakusho, que merecidamente recebeu no Festival de Cannes de 2023 o Prémio para Melhor Actor.
Na mesma edição do Festival, “Dias Perfeitos” recebeu ainda o Prémio do Júri Ecuménico.
CONTRA: Nada de especial…!