Um Pequeno Favor, em análise

Em “Um Pequeno Favor”, Anna Kendrick e Blake Lively são um par de venenosas amigas envolvidas numa intriga de desaparecimentos, identidades falsas e muitos cocktails.

O realizador Paul Feig tem vindo a afirmar-se como um dos grandes nomes no panorama da comédia americana. Ele pode não ter o nível de fama de quem trabalha em frente às câmaras, mas uma breve consulta à sua filmografia depressa nos tira quaisquer dúvidas acerca do seu pedigree cómico. No pequeno ecrã, Feig já realizou episódios para “Freaks and Geeks”, “Weeds”, “Arrested Development”, “Nurse Jackie” e “The Office”.  No cinema, ele assinou “A Melhor Despedida de Solteira”, “Armadas e Perigosas” e “Spy”, entre outros projetos que tornaram Melissa McCarthy numa das estrelas de cinema mais fantasticamente improváveis do século XXI. Tudo isto para dizer que Paul Feig é um nome sinónimo de comédias desbocadas, cheias de improvisações caóticas e umas boas doses de mau gosto deliberado.

A última coisa que nos passaria pela cabeça seria que Feig fosse realizar uma adaptação de um mistério literário que podia ser o primo não muito afastado de “Em Parte Incerta” e “A Rapariga no Comboio”. Agora, com o “Um Pequeno Favor” nos cinemas, quaisquer dúvidas em relação à compatibilidade entre história e cineasta parecem absurdas, sendo que Feig, na boa tradição dos vilões deste tipo de enredo, nos enganou a todos. O filme em questão é algo a que se poderia justamente chamar uma paródia de todo um género de cinema e literatura. O filme “Um Pequeno Favor” trata-se de uma subversão do livro de Darcey Bell, não sendo nenhum parente de “Em Parte Incerta” e “A Rapariga no Comboio”, mas sim o seu reflexo distorcido.

Um Pequeno Favor critica
Dois monstros amorais tão repugnantes quanto irresistíveis.

Convém mencionar que a natureza cómica de “Um Pequeno Favor” não torna o projeto menos anómalo na filmografia de Feig. Ao contrário dos ritmos de improvisação indisciplinada que dominam os seus outros esforços cinematográficos, esta é uma obra de diabólica precisão, com um guião denso, ritmos exatos e onde não somos convidados a nos identificarmos com personagens adoráveis. Pelo contrário, Feig tem gozo em suscitar no espectador iguais doses de repugna e relutante paixão face a uma coleção de monstros amorais. Até o ambiente suburbano em que a ação decorre, seu estilo e hábitos sociais são retratados com um delicado balanço tonal que oscila entre a mais cruel das sátiras e uma espécie de redenção ao apelo da podridão humana.

O filme começa com uma sequência de créditos ao som de pop francesa que deve muito aos filmes de James Bond e outros exercícios em decadência europeia nos anos 60. Contudo, a sofisticação estilística em evidência é filtrada por uma sensibilidade moderna, que tem mais que ver com a curadoria de uma conta de Instagram que com Eurotrash clássico. Esta é a estética que rege toda a construção formal de “Um Pequeno Favor”, glamour e sofisticação retro na hegemonia das redes sociais. Para sublinhar isso, a cena que realmente dá início à narrativa toma a forma do vídeo de uma vlogger chamada Stephanie que cumprimenta a sua audiência dentro do filme, e por consequência a audiência no cinema, com um “Olá mães!” que é dito por Anna Kendrick com uma casualidade bonacheirona tão forçosa que se torna quase numa agressão.

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Esta é, para os propósitos da narrativa, a nossa heroína, ou melhor, a nossa protagonista pois Stephanie tem muito pouco de heróico. Enviuvada por um acidente de carro que ceifou também a vida do meio-irmão, Stephanie tem passado os últimos tempos a tentar vingar como uma “mommy vlogger”, enquanto o seguro de vida do marido a sustenta a ela e ao filho. No vídeo que nos introduz ao mundo em que ela vive, Stephanie fala do trágico desaparecimento de Emily, a sua melhor amiga que sumiu há cinco dias depois de deixar o seu filho aos cuidados da vlogger. Há algo de desconcertante no otimismo sorridente com que ela descreve estas desgraças, mas não temos muito tempo para ponderar isso antes de o filme nos atirar para uma coleção de flashbacks.

Tudo começou num dia chuvoso, depois do fim das aulas do filho. À entrada da escola, Stephanie é confrontada com a entrada de uma estrela no seu universo. Ela é misteriosa, impossivelmente elegante num fato de linhas masculinas, seus movimentos são fetichizados pela câmara lenta e sua presença complementada pela banda-sonora dramática. Ela é Emily, uma mulher magnética que também é abrasiva, rude, despreocupadamente narcisista e portadora de um sentido de humor que se baseia única e exclusivamente num cocktail de crueldade e condescendência. A amizade dos filhos leva Stephanie a visitar a mansão modernista onde Emily vive muito acima das suas posses. Aí, a vlogger completa a sua caracterização mental da outra mulher com os factos do seu alcoolismo e um matrimónio cujas fundações parecem consistir em atração sexual e pouco mais.

Um Pequeno Favor critica
O filme é uma sobremesa deliciosamente venenosa.

Como é óbvio, Emily é irresistível e as duas tornam-se em melhores amigas. Em nome da franqueza, convém dizer que Emily usa Stephanie como uma ama-seca não paga, mas a ligação entre as duas mulheres é inegável. O desenvolvimento dessa dinâmica é muito ajudado pelo facto de que Stephanie, não obstante a sua fachada de impugnável integridade, é uma mulher desprovida de um código moral. O mínimo dos seus crimes é a rapidez com que ela dorme com Sean, o marido escritor da desaparecida, e decide ir viver com ele na mansão de sonho depois da descoberta do suposto cadáver de Emily. Não é nenhum spoiler dizer que nem tudo é o que parece e que a melhor amiga de Stephanie não demora a voltar a entrar na narrativa, através de uma série de reviravoltas, cada uma mais insana que a outra.

Pela sua parte, todos os envolvidos na construção desta delícia cinematográfica estão bem cientes da absurdez do enredo. Até nos momentos mais putativamente sérios do filme, “Um Pequeno Favor” está sempre a piscar o olho ao espectador, quer seja com a sua estética solarenga, diálogos divertidos ou com o exagero dramático com que executa todos os seus elementos mais clichés. Na boa tradição do cinema de Feig, a grande arma secreta do realizador e a chave que faz toda esta construção paródica funcionar é o trabalho de um elenco impecável, onde Anna Kendrick, Blake Lively e Henry Golding dão vida a Stephanie, Emily e o homem entre elas tornando suas personagens em charmosos sociopatas que, enquanto audiência, estamos condenados a amar.

Golding é estupendo a sugerir quão patético Sean é apesar da sua presença digna de um herói de matinés saído de um clássico de Hollywood. No papel mais carnudo e abertamente psicótico, Lively dá vida às contradições de Emily com estonteante facilidade, fazendo das suas micro agressões sociais pequenas facadas que servem de prelúdio à jubilante monstruosidade que ela deixa a descoberto durante o clímax. Mais do que tudo, Lively parece estar a divertir-se com a absurdez da história e isso dá-nos permissão para encontrar prazer na parvoíce do enredo. Por fim, Kendrick dá a prestação da sua vida, fazendo de Stephanie alguém cuja atitude risonha é legitimamente assustadora, mesmo quando ela está somente a ensinar como se fazem velas decorativas no seu vlog. No fundo, as personagens fazem do filme uma história de pessoas horríveis e glamourosas que decidem destruir a vida umas das outras enquanto tentam forçar o próprio tecido da realidade a subjugar-se aos seus caprichos. O que poderia ser melhor?

Um Pequeno Favor, em análise
Um Pequeno Favor

Movie title: A Simple Favor

Date published: 25 de September de 2018

Director(s): Paul Feig

Actor(s): Anna Kendrick, Blake Lively, Henry Golding, Ian Ho, Joshua Satine, Andrew Rannells, Kelly McCormack, Aparna Nancherla, Andrew Moodie, Rupert Friend, Linda Cardellini, Jean Smart

Genre: Comédia, Crime, Drama, 2018, 117 min

  • Cláudio Alves - 88
  • Marta Kong Nunes - 89
89

CONCLUSÃO

“Um Pequeno Favor” é um cupcake colorido, pronto para ser fotografado e exibido no Instagram, com um recheio tão venenoso que uma dentada é suficiente para nos garantir residência no cemitério mais próximo. Sem sobra de dúvida, este é o melhor filme de Paul Feig e pode bem vir a se afirmar como a hora mais gloriosa na carreira de Anna Kendrick e Blake Lively. Com isso dito, quem deteste música pop francesa dos anos 60 deve evitar este thriller cómico a todo o custo.

O MELHOR: O amor que Feig tem para com as suas personagens. Outros realizadores facilmente cairiam num registo punitivo de grotesco, mas Feig quer sempre apresentar as personagens na melhor luz possível, especialmente quando elas está a ser imperdoáveis na sua crueldade e egoísmo.

O PIOR: O filme desenrola-se com uma velocidade admirável, mas, mesmo assim, com quase duas horas, é demasiado longo.

CA

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  1. Frederico Daniel 27 de Setembro de 2018

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