A Vitória do Shoegaze

Queremos celebrar a vitória dos Slowdive, o melhor disco de 2017 aqui para nós, na MHD, regressando à “cena que se celebra a si própria” e aos discretos heróis do shoegaze .

Com o lançamento em 2017 de Slowdive, um dos álbuns criticamente aclamados do ano, e de Weather Diaries, onde se divisa um novo futuro para os Ride, culmina a reabilitação de um género que há muito merecia ser vindicado. A ressurreição da cena musical (maioritariamente britânica) do início da década de 90, a que se deu depreciativamente o nome de shoegaze, começou com o regresso aos palcos dos My Bloody Valentine em 2008 e o lançamento, em 2013, daquele terceiro longa-duração em que já ninguém acreditava, mbv. O regresso ao activo, entre 2014 e 2016, dos Swervedriver e (ainda que por pouco tempo) dos Lush continuou o movimento de retorno dos principais actos da cena original. O apogeu deu-se com a reunião dos Slowdive e dos Ride, as outras duas bandas que, juntamente com os MBV, compõem a tríade criadora do género. Esta é a sua história e a melhor forma de a viajar é mesmo à boleia do Spotify. Mantenham-no à distância de um clique, embrenhando-se nas (ainda hoje) surpreendentes paisagens sonoras que vão surgindo a cada curva.

A CRIAÇÃO DA NEBULOSA DE RUÍDO

Os Ride comunicaram o regresso numa nota de imprensa que incluía duas citações. Uma, de David Crosby, comparava a primeira banda ao primeiro amor. Nunca se esquece nem se sente por outra o mesmo que por ela. A segunda, do economista Jacques Attali, era uma apologia do ruído, visto como paradigmático das relações entre os homens, na sua fusão de clamor, melodia, dissonância e harmonia. Embora peculiar, a defesa do barulho não é nova. No início do clássico The Sound of the City, Charlie Gillett observa que os sons urbanos podem ser brutais e opressivos, impondo-se a todos os que andam pelas ruas. Muitos dos que, por causa do trabalho, são obrigados a viver nas grandes cidades sentem-se livres só quando conseguem sair dela, nem que seja por alguns dias.

O rock & roll foi talvez a primeira forma de cultura popular a celebrar, sem reservas, características da existência urbana que estavam entre as mais criticadas. No rock & roll, os sons estridentes e repetitivos da vida da cidade foram, de facto, reproduzidos como melodia e ritmo. (p. xviii)

A Creation Records

Se o shoegaze fascina é por este uso do ruído como reconciliação com a vida urbana e comunicação de si enquanto habitante da modernidade. Se floresceu foi pela discográfica independente fundada pelo carismático Alan McGee. A sua inexplicável habilidade para ocupar a capa dos jornais e atrair a atenção para as bandas só era superada pela perspicácia em entrever nelas o seu talento artístico ou, pelo menos, o seu potencial mediático. Entusiasmado pela revolução punk, Alan McGee montara uma rede de projectos avulsos, desde editar uma revista até tocar numa banda e gerir um clube nocturno, que desembocou na fundação da Creation Records, em 1983.

Alan McGee

A discográfica viria a ser conhecida pelo estilo de vida de McGee e pelas festas nos seus escritórios, bem mais aparatosos do que o discreto grupo de bandas que contratara e, sem o saber, viriam a fazer história. Na altura, embora reconhecesse publicamente o valor de Loveless, o difícil parto de um disco que levaria dois anos a gravar e a produtora (reza a lenda) quase à falência não ajudava a que os MBV fossem a banda de eleição de McGee. Sempre volúvel e provavelmente por despeito, apoucou-os há anos atrás no The Guardian, considerando-os um engodo. Mesmo os Ride, mais propensos à cobertura da imprensa e liderança dos festivais e tendo embora trazido à produtora o capital inicial com que financiar a maior parte do seu catálogo subsequente, não conseguiam competir, na estima de McGee, com os animais de palco, da rádio e da MTV que eram os Primal Scream, Teenage Fanclub e, mais tarde, já por altura da venda parcial da Creation à Sony, os Oasis.

O perfil inconspícuo das bandas de shoegaze, com os seus membros escondidos na escuridão e por detrás da densa nuvem de distorção, não lhes granjeava grande afeição junto de McGee. Este dedicava-se sobretudo às bandas capazes de obter alguma notoriedade junto do público, dos meios de comunicação e dos promotores de concertos. Mas, crédito lhe seja dado, concedeu total liberdade criativa às bandas mais experimentais como The House of Love, MBV, Ride, Swervedriver, Slowdive, Medicine ou Moonshake, e o apoio que, dentro da constante falta de saúde financeira, era possível dar à gravação dos discos.

Por um lado, sabe-se bem quanto o shoegaze deve a sua origem ao dream pop dos Cocteau Twins, à voz melódica e indecifrável de Elizabeth Fraser a flutuar sobre as notas de guitarra de Robin Guthrie, ora afogadas em feedback (Treasure, 1984), ora a reverberar límpidas no contexto de um baixo melódico e encorpado (Heaven or Las Vegas, 1990). Por outro lado, pode ser que nunca chegasse a existir sem o encontro de Alan McGeee com os Jesus & The Mary Chain. Enquanto lutavam por conseguir, num difícil início de carreira, marcações para tocar ao vivo, o baterista (também vocalista dos Primal Scream) Bobby Gillespie entregou uma cassete demo a McGee. Percebendo-lhe o potencial, McGee tornou-se o seu gerente e contratou-os para editarem um single na Creation, Upside Down (1984), o primeiro grande sucesso da produtora. Este granjeou aos Jesus & Mary Chain um contrato com uma subsidiária da Warner, onde editaram o seu álbum de debute, Psychocandy (1985). Na sua sonoridade muitos vêem desenhada já a principal característica do shoegaze. Senão, ouçam a “Just Like Honey” e tirem as vossas próprias conclusões.

My Bloody Valentine

Mas aquilo a que propriamente chamamos shoegaze foi inventado por Kevin Shields. E talvez, quem sabe, nunca tenha propriamente existido para lá da sua banda. Os primeiros EPs dos My Bloody Valentine revelam uma banda à procura de um som, desde o pós-punk gótico dos Birthday Party e dos Cramps a uma versão de tweepop resultante da fusão de melodias pop da década de 1960 com a nuvem de distorção de Psychocandy. A grande viragem aconteceu com You Made Me Realise (1988), disco que deu à luz o género.

Kevin Shields, Bilinda Butcher, Debbie Googe e Colm Ó Cíosóig

Desde o tempo em que ouvia os Cramps, em 1984, que Kevin Shields se interrogava sobre o que aconteceria se usasse constantemente a alavanca de tremolo enquanto tocava guitarra. Segundo conta ao The Quietus, a oportunidade de o fazer surgiu durante os ensaios de “Slow”. Estava a tocá-la depressa, contra a batida lenta da bateria e aplicando-lhe o efeito de reverberação reversa, descoberto numa entrevista a Bob Mould. Um amigo emprestara-lhe entretanto uma Fender Jazzmaster, cuja alavanca, ao contrário das Bigsbys, podia ser usada o tempo todo, sem desafinar a guitarra. Shields introduziu algumas modificações na ponte e na alavanca, para que esta se tornasse mais parte da mão do que da guitarra. Ao ensaiar a canção, ficou maravilhado com o efeito obtido.

Ainda assim, quando tentou pela primeira vez, pensou que era bom mas não funcionava realmente, parecendo apenas uma velha coisa de rock & roll, à maneira do que já fazia, por exemplo, o guitarrista dos Cramps. Lembrou-se do uso que os produtores de hip-hop faziam das amostras sonoras, enterrando-as e emudecendo-as parcialmente na mistura, dando a “sensação de sons a serem decompostos e destruídos e depois reutilizados”. Baixou então o botão de controlo de tom, tornando mais grave o timbre, para ver o que acontecia: “E, de repente, soava fantástico. De repente, tinha este… som derretido”. Shields acabara de inventar a primeira metade da sonoridade shoegaze ou aquilo a que se veio a dar o nome de “glide guitar”: alterar ligeira e continuamente a frequência das notas, afinando-as e desafinando-as, por meio do uso ininterrupto da alavanca de tremolo, no seio da reverberação reversa.

Sentia este fascínio pela torção da frequência. Por isso, quando consegui aquela guitarra que o meu amigo me emprestou […] foi como descobrir a distorção pela primeira vez, ou o eco: Oh, meu Deus, isto é espantoso, posso-me finalmente exprimir. (Kevin Shields)

Em You Made Me Realise esta nova técnica é usada para tocar malhas agressivas, revelando as influências do momento, como os Hüsker Dü, Dinosaur Jr., Sonic Youth. Mas aparece nele também, pela primeira vez, a outra metade do som shoegaze. Bilinda Butcher juntara-se à banda no ano anterior, trazendo consigo o estilo de canto suave, onírico e impenetrável de Elizabeth Fraser, que contrastava com a nebulosa de ruído da guitarra de Shields ao mesmo tempo que sublinhava o arrastamento da reverberação reversa. Em Loveless (1991) atingiu a perfeição, como se pode ver no clássico imortal que abre o disco,”Only Shallow”.

Paradigma nunca imitado, porque isto não são só pedais e neblinas de feedback, a perfeição custou dois anos de calvário para ver a luz do dia. “Um grito em câmara lenta” é ao que soa mas é também como saiu. A Creation estava perto da falência, a fintar os credores, incapaz de pagar as contas dos estúdios onde os MBV gravavam, obrigando-os a migrar por dezanove estúdios, as cassetes várias vezes confiscadas. Uma vez foi preciso tirá-las a meio da noite, de um estúdio qualquer em Ladbroke Grove, para não as perder. Como a produtora não tinha dinheiro para pagar aos músicos, estes viam-se obrigados a ocupar ilegalmente apartamentos desabitados. Expulso de um destes edifícios, o baterista Colm Ó Cíosóig encontrou-se a dormir, no gelo de Outubro, em sofás emprestados, apanhando um vírus que lhe arruinou a saúde, já debilitada pela tensão, fadiga e problemas pessoais.

Colm participou em apenas duas das canções, “Only Shallow” e “Touched”, tendo a percussão nas restantes faixas resultado de uma morosíssima montagem de diversas amostras sonoras de Colm a tocar, replicadas e colocadas em sequência, de modo a soarem o mais naturalmente possível, porque Shields não conseguia tocar com uma máquina de ritmos. Apesar do uso abundante de amostras sonoras, estas são acima de tudo do feedback das próprias guitarras e das vozes de Bilinda e Shields, com a maior parte das canções a ter apenas uma pista de guitarra. Shields podia, por causa do seu perfeccionismo, demorar-se muito em certos pormenores (a pandeireta duma das canções ocupou uma semana de estúdio) e o disco custou cerca de 250.000 libras. No entanto, não é a elaboradíssima produção de estúdio que muitos julgam. A sua força reside mesmo na composição das canções e na sonoridade ao vivo da banda.

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ASCENSÃO DO SHOEGAZE

Steve Queralt, Andy Bell, Mark Gardener e Laurence Colbert

Ride

Os MBV começaram quando Shields e Colm se encontraram aos quinze anos e, tendo-se tornado logo amigos, formaram uma banda. O mesmo aconteceu com os Ride. Mark Gardener e Andrew Bell eram amigos desde os doze anos, aproveitando as aulas de arte em Cheney, uma escola secundária em Oxford, para darem largas à mútua afeição pelos Smiths. Entrando no Banbury Art College conheceram Loz Colbert e um antigo aluno de Cheney, Steve Queralt. Começaram a ensaiar na garagem de Loz e a deixar-se influenciar pelas bandas que Steve ouvia. Aos Smiths e Stones Roses juntaram-se The House of Love, MBV, Loop, Spacement 3, Cocteau Twins e Sonic Youth.

As influências não se limitavam, contudo, ao campo da música. Estudantes de pintura, aproveitaram algumas das virtudes do movimento expressionista americano. A sombria, estranhamente acolhedora, simplicidade existencial de Rothko, a energética irreverência de Pollock diante das formas tradicionais, o método de trabalho primeiramente intuitivo e só depois conceptualizado de Kooning, tudo isso os Ride traziam para a composição. Afinal, também o ruído é uma forma de abstracção. A certa altura, os professores disseram-lhes que, embora não fizesse parte do currículo, tinham encontrado a sua forma de expressão, o que era uma grande coisa. Marcaram alguns concertos para os quais iam aterrorizados. Lidaram com o medo começando a tocar furiosamente, até criar uma torrente de ruído que, de um momento para o outro, varresse o temor.

Contratados pela Creation, os Ride trouxeram à produtora, em 1990, dois dos seus marcos históricos. O EP Ride colocou-a pela primeira vez na tabela dos singles (#72) e o disco de debute, Nowhere, pela primeira vez no Top 20 (#11). Resultado de uma composição conjunta, baseada nas canções de Gardener e Bell e nas quais todos colaboravam, Nowhere fundia a nebulosa de ruído com as melodias pop de Mark e Andy e a propulsão da secção rítmica de Steve e Loz, ambas herdadas da cena Madchester. Basta ouvir a “Vapour Trail” para perceber qual o grande contributo dos Ride para o género: a potência de uma secção rítmica em luta feroz com a torrente de distorção. Um conflito que se resolve no todo da canção, por meio do sentido impecável de composição e sensibilidade pop da banda.

Nowhere éramos nós enquanto jovens a atravessar a faculdade, fazer música, tocar concertos e a viver todo este entusiasmo e tensão. Era esta grandiosa, indefinível, ruidosa colagem. Uma declaração artística. (Colbert)

Going Blank Again (1992), o segundo longa-duração, continuou a impressionante trajectória dos Ride em direcção ao sucesso. O longo e experimental single, “Leave Them All Behind”, apesar dos seus oito minutos, alcançou o nono lugar na tabela, enquanto o álbum estreou em quinto lugar. No entanto, uma longa digressão de dois anos, a tocar 281 concertos e a passar, só em 1992, por 12 países, extenuou-os. Talvez por trabalharem tão bem juntos, esqueceram-se de que é preciso trabalhar juntos, avança Loz. Nos dois álbuns seguintes, as divergências entre Mark e Andy tornaram-se tão grandes que a única maneira de as resolver foi manter as canções separadas, dedicando-se cada um às suas e negligenciando, no processo, o contributo da secção rítmica. “Uma discussão resolvida da maneira mais infantil possível”, diz Bell. Dave Newton, o seu gerente de sempre, lembra que a banda não foi ajudada pela moda que, virando de um dia para o outro, levou a rádio e a crítica a abraçar incondicionalmente o grunge.

Um dia, sem aviso prévio, Gardener comunicou que ia deixar a banda e mudar-se para Nova Iorque, onde arranjara outro contrato, enveredando por uma carreira a solo. Era chegado o fim. Bell acabou por ir tocar baixo para os Oasis, Colbert foi estudar música, enquanto Queralt a abandonou de todo, indo trabalhar para a loja Habitat, onde Thom Yorke entrou um dia. Evitaram olhar um para o outro. Yorke fez algumas perguntas sobre um produto e comprou o sofá mais caro da loja.

Slowdive
Neil Halstead, Christian Savill, Rachel Goswell, Nick Chaplin e Simon Scott

Slowdive

No que respeita a amizades criativas, ninguém bate, contudo, em antiguidade o núcleo fundador dos Slowdive, Neil Halstead e Rachel Goswell. Conhecendo-se desde os seis anos de idade, na cidade de Reading, ambos cantavam e tocavam guitarra. De uma primeira banda, que tinham formado no grupo dominical de jovens a que iam, retiveram o baterista Adrian Sell e, juntamente com um seu amigo que tocava baixo, Nick Chaplin, formaram os Slowdive, em 1989. O nome foram-no buscar a uma canção dos Siouxie & The Banshees, banda preferida da gótica Goswell. A banda precisava de outra guitarrista, mas acabaram por integrar Christian Savill porque fora o único a responder ao anúncio. Ofereceu-se para usar saias, mas “felizmente recusaram, porque eu não ficaria bem de vestido”. Mais tarde, dois ou três bateristas depois, o alinhamento definitivo concluiu-se com a entrada de Simon Scott.

Principal compositor da banda, Halstead conta que as suas influências foram os Jesus & Mary Chain, os Cure, os Byrds. O interesse pela música começou ao ver, aos onze anos, um documentário sobre os Beatles e pensar que “isto deve ser divertido”. No dia seguinte, pediu ao pai que lhe comprasse uma guitarra para poder aprender a tocar aquilo. A sua carreira deveu-se, não tanto a sentir-se chamado a uma vocação, quanto a chegar a um ponto onde se dera conta de que, na realidade, não servia para mais nada. Melhor assim, porque se o resto do mundo não perdeu grande coisa, a Inglaterra ganhou o que a Allmusic e a Time Out consideram um dos seus melhores compositores.

Última das três bandas da tríade fundadora a entrar em cena, os Slowdive sofreram como ninguém os excessos da imprensa e do ambiente. No clima de entusiasmo criado pelo sucesso não só crítico como também popular dos MBV, Ride e outras bandas de shoegaze, não fora preciso mais do que uma cassete demo e um concerto para conseguir um contrato com a Creation. Mas as frustrações começaram logo com a gravação do primeiro disco, Just for a Day (1991). Em vez de coligir os três EPs de grande qualidade que já tinha, a banda preferiu compor canções novas, apesar de não ter nenhuma ainda no momento em que entrou para o estúdio. Dessas, Alan McGee gostou apenas de uma. E, embora o disco tenha sofrido uma reapreciação, na altura a crítica, acusando já a reacção violenta que se seguiria à euforia inicial, recebeu-o muito negativamente. A banda sentiu-se frustrada com o resultado.

Entretanto, Neil mudou-se para Gales, tendo terminado a sua relação com Rachel e aumentando com isso o clima de tensão dentro da banda. Souvlaki (1993) começou com o regresso de Halstead. Trazia consigo um núcleo de canções nas quais a banda trabalhou, algumas delas com a ajuda de Brian Eno, a quem tinham escrito uma carta a pedir a colaboração no disco. Sob a influência de Joy Division e do período berlinense de David Bowie e com o contributo do estilo “menos é mais” de Ed Butler, o responsável pela mistura do álbum, Halstead desenhou um disco minimalista. Souvlaki realça o parentesco do shoegaze com o dream pop e criou uma nova estrada para o género (contrária à aberta pelos Ride) em direcção à música ambiente. “Souvlaki Space Station” retira a sua inspiração de Aphex Twin e da música dub e drum & bass.

Queríamos fazer qualquer coisa que fosse experimental, ligeiramente dubby, mas ainda assim com enormes guitarras e melodias simples. Funcionou muito, muito bem. Demo-lo a Ed Butler para que o misturasse e ele retirou montes e montes de guitarras, tornando-o, na realidade, mais forte. Quando nos sentámos para o ouvir, ficámos mesmo contentes com o facto de ter levado dois anos a fazer. Penso que é o nosso melhor disco. (Simon Scott)

Rebelde à exigência de McGee de compor um disco pop, indiferente à opinião de Scott, que vendo-se substituído pela percussão electrónica deixou a banda, trabalhando agora de forma totalmente isolada, Halstead continuou por este caminho em Pygmalion (1995). Distanciando-se do shoegaze no sentido do pós-rock ambiental e electrónico de bandas como Bark Psychosis e Disco Inferno, cometeu, segundo um jornalista do NME, “mais um suicídio de carreira”.

Criativamente esgotados. Vendidos pela Creation à SPK, editora americana que lançara a banda sonora do filme Teenage Mutant Ninja Turtles e lhes retirara o apoio financeiro à digressão pela América do Norte uma semana antes de começar. Rotulados de músicos estetas burgueses por um ambiente fascinado com o espírito proletário das letras de crítica social do Britpop (quando não tinham onde cair mortos, autofinanciado a tournée e dormindo no chão de casas de fãs e bandas amigas). Descritos pelo vocalista dos Manic Street Preachers como mais odiosos do que Hitler. Desmoralizados por um dos últimos concertos dados em Inglaterra, que acabara vazio, com a mulher da limpeza a passar uma esfregona pelo chão e Savill a pensar que era hora de procurar emprego, os Slowdive terminaram.




DECLÍNIO E RESSURGIMENTO DO SHOEGAZE

Simon Reynolds, conceituado crítico e jornalista musical

“Shoegaze”: Um rótulo pejorativo

No dia 1 de Dezembro de 1991, Simon Reynolds escreveu para o New York Times uma apreciação do ano em música, destacando como único fenómeno de interesse o surgimento de um conjunto de bandas – My Bloody Valentine, Slowdive, Lush, Chapterhouse, Ride, Swervedriver – que denominou de “dream pop”. Queria com isso referir um estilo que combinava guitarras nebulosas e distorcidas com vozes murmuradas, por vezes completamente submergidas numa torrente amorfa de ruído, combinando o ruído de bandas americanas como os Hüsker Dü e os Dinosaur Jr. com a fragilidade de harmonias delicadas reminiscentes dos Byrds.

Uma descrição muito exacta, à qual se seguia uma hipótese de explicação sociológica para o seu surgimento e características. Tratar-se-ia de escapismo, uma declaração da futilidade de qualquer compromisso político, após doze anos de conservadorismo, numa altura em que já não havia quaisquer apoios financeiros a quem escolhia abandonar a faculdade por vários motivos, incluindo artísticos. Apesar da boa intenção do artigo, percebe-se rapidamente que o escapismo político abusivamente atribuído às bandas de shoegaze prejudicá-las-ia face à música pretensamente engajada de bandas como os Blur e os Oasis.

O aplauso eufórico ainda soava, o artigo de Reynolds não fora assimilado e já o NME e o Melody Maker procuravam bandas mais mediáticas. A irreverência niilista do grunge e o machismo performativo do Britpop, aliados a formas musicais mais bombásticas e amigas da dança e da rádio, apelavam bem mais ao negócio da imprensa, desejosa de vender revistas e cheia de jornalistas à procura de um furo. Quando a maré começou a virar, o género era ainda tão novo que mal tivera tempo de ser apreendido e devidamente classificado. “Dream pop” não pegou e, em vez disso, fizeram fortuna aqueles rótulos que traziam em si uma crítica verrinosa.

O termo shoegaze foi cunhado por um jornalista da revista Sounds, numa recensão crítica de um concerto da banda Moose. Referia-se ao contínuo “olhar” (gaze) para o chão, sardonicamente referido por “sapatos” (shoe), do vocalista Russell Yates e do guitarrista Kevin McCillop, um para ler as letras e o outro para se concentrar nos múltiplos pedais de efeitos. O NME estendeu o termo “shoegaze” a outras bandas, por parecer aplicar-se bem não só ao contínuo carregar nos pedais pelos guitarristas, como também ao pendor ligeiramente hipnótico, transcendente da sonoridade, que convidava a um estado absorto e de concentração na música. O outro termo pejorativo, “a cena que se celebra a si própria”, foi da autoria do Melody Maker, referindo-se ao facto de os membros das bandas se conhecerem entre si e irem a concertos uns dos outros, normalmente em Camden.

Uma nova vida para o shoegaze

No ambiente hostil que se instaurou, criando ou intensificando tensões internas, nenhuma das bandas de shoegaze sobreviveu. Tendo conhecido mais ou menos sucesso, perdurando algumas pela década de noventa adentro, a verdade é que ou acabaram ou tiveram de ceder às sonoridades em voga.

O valor do que tinham criado não deixou de ser reconhecido, porém, e o género ressurgiu, particularmente na América, na década de 2000, com Ulrich Schnauss, Asobi Seksu, Autolux, recebendo muitas vezes o nome de nu-gaze. A sua ascendência determinou certas formulações de pós-rock ambiental ou electrónico, como M83, ou de pós-punk e noise-rock, como A Place to Bury Strangers e Blonde Readhead, mas fazendo-se sentir acima de tudo no dream pop de Beach House, The XX ou A Sunny Day in Glasgow.

O shoegaze foi conquistando não só discípulos, mas fãs insuspeitados nas gerações que se seguiram, com muitos a não serem nascidos na altura em que as suas bandas percorriam os palcos do mundo. De tal modo que a actual página de Facebook dos Slowdive foi “tomada de assalto”. Quando a banda entrou em contacto com o fã que a criara e mantivera durante anos, pedindo-lhe autorização para usar algumas informações contidas na página, este cedeu-a de imediato e por inteiro.

Não faltava, por isso, público para estes desaparecidos antes de tempo. Começaram a surgir propostas de festivais, principalmente do Primavera Sound. As bandas foram, uma após outra, aceitando os convites, porque, de facto, “não tinham conseguido realizar certos aspectos de algumas das coisas que gostavam de fazer” (Loz Colbert) e esta era a oportunidade de “revisitar uma coisa que tinha ficado inacabada em vários sentidos” (Neil Halstead). As relações fracturadas tinham sarado entretanto. No caso dos Ride, como fora preciso irem-se encontrando para resolver questões logísticas e financeiras relativas à banda, as reuniões restabeleceram no tempo as ligações. Isso e a maturidade, como diz Colbert, para quem a diferença entre os Ride de antes e de agora é “que todos crescemos, casámos, tivemos filhos, outras vidas”. Simon Scott arrependeu-se de ter deixado os Slowdive e perdido a oportunidade de participar em Pygmalion, dado o seu interesse posterior em música ambiente e electrónica.

Voltei à banda, estou a tocar algumas das canções ao vivo e penso que soamos melhor do que nunca. Queremo-lo mais do que nunca. Tínhamos qualquer coisa de muito especial que nos foi tirada porque as vibrações tornaram-se muito negativas. Ninguém parecia gostar de nós, sentíamos como se ninguém nos estivesse a ouvir. Agora, subir ao palco e ver 25.000 pessoas é incrível. (Simon Scott)

Kevin Shields reuniu os MBV e, doze anos passados, lançou finalmente o disco que estava em preparação desde que Loveless fora editado e mal recebido por muita imprensa de má-fé. Embora para o génio da guitarra shoegaze “não fazer coisas seja bastante destrutivo para a alma”, um artista perfeccionista nunca aceitaria lançar uma coisa que não fosse boa: “Se por alguma razão não consigo fazer um grande disco, não faço um disco de todo.” O não compromisso com a mediocridade compensa, porque 2013 viu surgir o grande mbv e 2018 dará à luz (esperamos) um disco ainda melhor destes irlandeses. O atraso foi fruto inevitável das circunstâncias que, como diz Shields, “têm um peso maior na minha vida do que qualquer plano ou enredo que eu possa conceber por mim”. À pergunta da Pitchfork se sente a pressão de inventar uma nova técnica sonora inovadora, responde que não: “Não estou à procura disso. E também não o procurei na altura. Acontece apenas. É como a maior parte das coisas boas. Se se dá com elas, reconhecê-las é suficiente.”

Os Ride foram os últimos a reunirem-se. A ideia estava em cima da mesa há muito tempo. Ao ver o pai morrer, Gardener percebeu que a vida não dura para sempre e decidiu avançar com uma coisa que desejava muito fazer antes que fosse tarde demais. Quando (finalmente) os Beady Eye acabaram, Bell ficou livre para se juntar aos Ride. Apesar de se ter sempre sentido ele mesmo em qualquer banda onde estivesse, reconheceu que havia qualquer coisa de especial nos Ride: “É a tua primeira banda e o teu primeiro amor. Estás a voltar a qualquer coisa de cujo início fizeste parte.” Queralt arriscou tudo, despedindo-se da Habitat. Depois de vários anos a tocar em outras bandas, Colbert estava ansioso por tocar as canções dos Ride:

Eram canções sobre as nossas vidas. Eram tão pessoais. E, por isso, a maior parte das vezes com os Ride, não era fácil subir ao palco; era subir ao palco com a própria vida. Não sei quão diferente será desta vez, mas vai ser incrivelmente intenso. Porque não se trata só de sair e tocar música para uma multidão. Somos nós os quatro. Somos nós de novo. (ao The Guardian)

Como dizem Gardener e Bell, “a impressão é a de ter voltado a casa”, tendo de haver “qualquer coisa de indestrutível nesta música, se conseguiam retomá-la onde a tinham deixado, vinte anos antes, e senti-la da mesma maneira”.

Julgo que fomos, de certa maneira, amados de novo à existência. As pessoas estimaram a nossa música de tal maneira que nos foram oferecidos estes concertos. […] Quero ter a certeza de que satisfizemos esse amor, dando-o de volta. (Bell)

E os Slowdive? Bom, tínhamos dito que este era um filme que acabava bem. Editaram o nosso disco do ano e, pelas conversas que têm tido sobre que direcções tomar num próximo álbum, voltaram para ficar. Como dizem os Ride, na canção “Pulsar”, a lançar brevemente num EP, significativamente intitulado Tomorrow’s Shore:

You could never see me shine like I always wanted you to. […] We’re on our way home from another star. It’s been so long and we’ve come so far.




10 ÁLBUNS ICÓNICOS DE SHOEGAZE

Como toda a grande música pop, o shoegaze tem canções e uma lista de temas clássicos poderia dar uma boa noção da subtil e variada palete que caracteriza a nebulosa de ruído. No entanto, como em toda a grande música pop, nada substitui a audição integral dos álbuns. Principalmente num género que ambiciona transportar o ouvinte, gerando uma paisagem sonora que, mais do que música, é um estado de alma. Ouvir estes 10 álbuns é viver a história do shoegaze e habitar, por alguns momentos, um lugar que não está em lugar nenhum.

Bibliografia

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