Botão vermelho, Camus e uma caçadeira | Festival de Veneza 2025 (Dia 7)
No Lido, nas sessões desta semana intensa do Festival de Veneza 2025, Kathryn Bigelow brinca com o apocalipse nuclear, Ozon mexe no cadáver de Camus e Gus Van Sant amarra-nos ao pescoço de um refém.
Ao sétimo dia do Festival de Veneza 2025 não se descansa, pois entre mísseis atómicos (“A House of Dynamite”), Camus reencarnado (“L’Étranger”) e um sequestro com arma serrada ao pescoço (“Dead Man’s Wire”), o Lido voltou a provar que o cinema só respira quando nos deixa desconfortáveis.
Kathryn Bigelow, François Ozon e Gus Van Sant trouxeram filmes que nos lembram que a ficção nunca anda longe da realidade e que a realidade continua sempre mais absurda do que qualquer argumento de cinema.
Kathryn Bigelow volta a carregar no botão vermelho
Kathryn Bigelow regressou à competição do Festival de Veneza 2025 com “A House of Dynamite”. E não, não mais é um “Top Gun” para a Netflix, é o que acontece quando uma realizadora que já nos pôs no Iraque (“Estado de Guerra”) e na caça a Bin Laden (“Zero Dark Thirty”) decide brincar com o apocalipse nuclear.
O filme parte de uma premissa simples: um míssil não identificado é lançado contra os EUA e a Casa Branca entra em modo pânico absoluto. Idris Elba e Rebecca Ferguson lideram uma corrida contra o tempo que parece saída de um pesadelo dos anos 60, quando a solução para a guerra nuclear era esconder-se debaixo da secretária da escola. Bigelow tem 73 anos mas continua a filmar como se fosse uma recruta em estado de choque.
O filme é nervoso, tenso, e carrega consigo a pergunta que ninguém quer fazer: ‘e se o fim do mundo não for uma distopia longínqua, mas um mero erro de cálculo?’ O título não engana, a casa é de dinamite, e nós estamos todos lá dentro.
François Ozon adapta Camus e desafia os fantasmas coloniais
Depois, o francês François Ozon decidiu mexer no vespeiro chamado “O Estrangeiro”, de Albert Camus e trouxe-o à competição do Festival de Veneza 2025. Um livro que toda a gente leu, sublinhou e imaginou à sua maneira, logo, qualquer adaptação já nasce culpada.
Benjamin Voisin interpreta Meursault de “L’Étranger”, o funcionário apático que enterra a mãe sem uma lágrima e acaba enredado numa tragédia ao sol argelino. Ozon filma a preto e branco com elegância, mas também com uma estranha leveza, como quem sabe que está a mexer num clássico mas recusa fazer dele um monumento de pedra.
O mais interessante está nas entrelinhas: ao revisitar a Argélia colonial, o realizador confronta não só Camus, mas também a própria França com a sua memória mal digerida. O cinema no Festival de Veneza 2025 é menos sobre um ‘homem absurdo’, existencialista — o diálogo final com o padre é notável — e mais sobre um país que ainda não sabe olhar-se ao espelho.
Gus Van Sant e o fio de espingarda que prendeu a América
E como Festival de Veneza 2025 também gosta de histórias de loucos com pistolas, chegou “Dead Man’s Wire”, o novo filme de Gus Van Sant, apresentado fora de competição mas com direito também ao Prémio Campari “Paixão pelo Cinema”, que vai receber hoje ao final da tarde.
O filme recria o sequestro realizado por Tony Kiritsis, que em 1977 prendeu o seu banqueiro hipotecário com um fio ligado ao gatilho de uma caçadeira. Sessenta e três horas de impasse transmitidas em direto para o mundo inteiro ou pelo menos para todos os EUA. Van Sant transforma este episódio num thriller claustrofóbico, feito de raiva surda e ressentimento americano, mas também de um humor negro que só podia vir dele.
Bill Skarsgård encarna Kiritsis com a energia de quem já não tem nada a perder. Al Pacino aparece, como sempre, a roubar planos, mas o que fica é a sensação de que Van Sant voltou ao território onde é rei: as margens, os desajustados, os que gritam contra sistemas que os esmagam.
O Lido, esse espelho distorcido
O sétimo dia do Festival de Veneza 2025 foi isto: Bigelow a lembrar-nos que basta um clique errado para o mundo acabar, Ozon a provar que o colonialismo ainda é uma ferida aberta e Van Sant a mostrar que a América sempre teve a sua cota de lunáticos armados muito antes das redes sociais lhes darem palco. Equilíbrio perfeito entre clássicos revisitados e novos pesadelos filmados. Porque o cinema no Festival de Veneza 2025 nunca é só entretenimento: é um espelho distorcido daquilo que andamos a fingir que não vemos.
JVM