"Frances Ha" | © Vendetta Filmes

Veneza em Casa | Frances Ha

O Festival de Veneza começa hoje e “White Noise” de Noah Baumbach tem a honra de abrir as festividades. Para quem não está pelo Lido em tempo de festival, fica aqui a recomendação de outro filme do mesmo autor – “Frances Ha.”

No início da carreira, Noah Baumbach parecia assumir-se como um novo Whit Stillman, cronicando as vagarias de jovens adultos abastados e intelectuais em cenários urbanísticos. Ou quiçá Baumbach fosse pretendente ao título de Woody Allen Júnior. Eram trabalhos cínicos e portadores de uma certa arrogância a fazer-se passar por sofisticação, obras que projetavam noções de criatividade no mesmo gesto em que refletiam as tendências do momento. Não querendo ser demasiado negativo, alguns desses esforços merecem aplausos, como é o caso de “Mr. Jealousy,” cheios de ironia, sátira e autocrítica.

Contudo, essa filmografia feita entre 1995 e 2000 constitui um bloco produtivo que existe em virtual divórcio em relação à restante obra do autor. O uso da mesma trupe de atores sublinha a unidade desses filmes primeiros, mas mais forte é a tonalidade transversal – esse sentido de superioridade em relação às personagens, talvez até a audiência. Aponta-se tudo isso porque, quando Baumbach estreou a sua quarta longa-metragem – “A Lula e a Baleia” – deu-se um momento de rutura. A afetação esvaneceu, mas o tom sardónico ficou, só que mais aguçado e temperado pela empatia humanística para com as figuras em cena.

frances ha critica veneza
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Desde então, todos os filmes de Noah Baumbach existem neste ato de equilibrismo louco entre a ironia de um humor cruel e a generosidade do artista. São estudos de personagem que revelam as arestas vivas dos seus protagonistas. Não as limam ou escondem, mas também não as recriminam com tom furioso. O píncaro desta nova abordagem encontra-se nos filmes em que Baumbach colaborou com a sua musa tornada parceira romântica e colega. Falamos, pois claro, da fabulosa Greta Gerwig, com quem o cineasta primeiro trabalhou em “Greenberg” e com quem viria a coautorar “Frances Ha.”

Baseado num argumento escrito por Baumbach e Gerwig, o filme considera a existência caótica de Frances Halladay, uma bailarina de 27 anos que vive em Nova Iorque com sua melhor amiga, Sophie. Tão dispersa e sem rumo como sua heroína, a narrativa principal toma forma quando a colega de casa anuncia a mudança – ela vai viver para Tribeca, longe de Frances. A crise que se forma tem base nas dependências financeiras dessa jovem artista que assim se vê forçada a mudar de casa em casa, conhecendo novos amigos e desassossegos ao longo da odisseia domiciliária. A certa altura até passa um fim-de-semana em Paris e volta à faculdade em desespero.

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Filmado em preto-e-branco pelo talentoso Sam Levy, “Frances Ha” remete para a influência da Nouvelle Vague no trabalho do realizador, mas também marca um regresso a temáticas passadas sobre jovens adultos na Grande Maçã. Paradoxalmente, uma maior aproximação para com os seus sujeitos reflete a maturidade do autor, como se este retorno a figuras mais novas fosse uma tentativa de melhorar as reflexões de outrora. Escárnio é excisado do exercício, deixando lugar para uma exploração sincera que, por vezes, resvala para um tenor confessional, cru e cheio de emoção sintetizada no grande ecrã.

Essa faceta sentimental, exemplificada por uma famosa passagem em que Frances descreve o tipo de ligação que quer ter com outro ser humano, é sempre balançada pela recusa de estruturas clássicas. A história é dispersa e força-nos a rir dos infortúnios da personagem titular, a sentir a sua dor e entender quanto ela é culpada de tantos dos seus problemas. O fluxo do enredo é assim fragmentado, uma torrente de estilhaços impressionistas, momentos colados ao acaso até que, no fim, temos um retrato criado pela acumulação desses detalhes aparentemente sem nexo. Trata-se de uma proposta arriscada, mas Baumbach e companhia fazem-na funcionar com um empenho honesto e boa dose de autenticidade.

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Já se falou da cinematografia e da estrutura textual, mas todos os criativos por detrás da cena merecem aplausos. Na montagem, Jennifer Lame dá fluidez aos episódios do argumento, enquanto Sam Lisenco procura especificidades nos muitos lares de Frances. A banda-sonora é um triunfo de referências, reciclando melodias do cinema de Godard e homenagens a Carax, David Bowie e Mozart, com piscares de olho a Truffaut metidos pelo meio. A combinação eclética sugere um casamento de gostos, quiçá os de Baumbach e Gerwig, grandes colaboradores em todas as vertentes que a expressão pode possuir.

Por falar em Gerwig, é altura de mostrar amor aos que se exibem em frente à câmara. Não só ela escreveu “Frances Ha,” como também dá vida à sua figura central, levando muitos a supor traços autobiográficos no filme. A performance é talvez a melhor que a atriz já apresentou, uma belíssima negociação entre humor e pathos, entre um naturalismo cómico e a elegância de uma revelação dramática. O elenco secundário é tão excelente como a protagonista, especialmente Mickey Sumner no papel crítico de Sophie. Como último comentário fica a curiosidade que “Frances Ha” foi a primeira colaboração do realizador com Adam Driver que se viria a tornar no seu ator-fetiche mais recente. O trio de Baumbach, Gerwig e Driver volta a reunir-se em “White Noise,” a ser distribuído pela Netflix em finais de 2022.

Podes encontrar “Frances Ha” na FILMIN Portugal. O filme encontra-se disponível para streaming e aluguer, dependendo se és subscritor da plataforma ou não.

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