Vodafone Paredes de Coura | Coura é a casa a que se regressa todos os anos
Termina a 24ª edição do Vodafone Paredes de Coura. Recheada de surpresas e dificuldades, ficará marcada na história por bons e maus motivos. Aqui fica a nossa análise, dia após dia, do que se passou no anfiteatro natural nas margens do rio Taboão.
Do Vodafone Paredes de Coura não se esperava nada menos do que quem conhece já está habituado: a magia de estar num ambiente tranquilo com direito a rio durante o dia, e de se ouvirem fabulosas bandas que às vezes nem se conhece tão bem à noite. E o que aconteceu foi isso: Paredes de Coura continua bonita como sempre, numa edição em que crowdsurfing ficou tão tradicional como o banho de água fria, e no que toca à música, do nada se fez poesia.
Relê: Paredes de Coura | Concertos que não podem perder
No primeiro dia, nem o ambiente chuvoso característico de Paredes de Coura abalou os visitantes que por ali passaram com grandes esperanças de ver o início do festival – apesar de que grande parte dos campistas já estava por lá atracado há dias. A banda de abertura da 24ª edição foram os portugueses We Trust, que tiveram o trabalho dificultado ao partilhar horário com um jogo de futebol o que diminuiu significativamente a atendência no recinto. Ainda assim, adoçaram a sua visita ao trazerem consigo os Coura All Stars, um grupo de crianças da comunidade que puderam partilhar a abertura do maior palco de espectáculos naquela que é a sua casa. A parte negativa da pequena mas até interessante atuação? O anúncio de que este foi o último concerto da banda.
O dia continuou na música portuguesa, com os Best Youth a surpreenderem e agradarem um público já numerosamente mais razoável, com a voz calmante de Catarina Salinas sempre em grande destaque, apesar de não ter havido mudanças comparativamente a qualquer outro concerto que dão.
Os Minor Victories, que os sucederam, já nem tanto. A super-banda não convenceu o público, que apesar de abanar as cabeças, não conhecia os temas e não encontrou motivos para se levantar do relvado. Apenas a entrada de Unknown Mortal Orchestra deu abertura para o delírio, no regresso à casa que os recebera há apenas 3 anos atrás num registo de palco secundário. Ruban Nielsen, vocalista do projeto americano, elevou a fasquia com “So Good at Being in Trouble“, acompanhado de um jam de guitarra e do lançamento para um “crowdsurfing” sem que parasse de cantar, num momento de simbiose com o público. Terminou com uma versão mais calma de “Can’t Keep Checking My Phone“, justificando o lugar que os UMO ocupam no rock psicadélico atual. Uma noite fechada pelos Orelha Negra, que apesar de um estilo de música irreverente e de um belo espetáculo de luzes a acompanhar, deixaram-se cair pela continuidade sem fim de temas sem vocais e da hora tardia de uma noite fria que levou embora mais de metade dos espectadores.
No segundo dia a história foi diferente. O dia que traria a maior atração do festival, os LCD Soundsystem, declarados como a banda mais cara de sempre no Vodafone Paredes de Coura, que já fora cabeça de cartaz de festivais de grande renome como o Coachella, e que aceitou incluir apenas Portugal, entre toda a Europa, na sua pequena tour – talvez pela prezada história que James Murphy tem com o evento. Seja qual for a justificação, o facto é que se contaram oficialmente cerca de 24 mil espectadores no dia 18 de agosto, e esses presenciaram algo lendário.
Depois de Riley Walker, os dois amigos que constituem os Whitney foram o aquecimento que o dia precisava. Como seus sucessores, os britânicos Sleaford Mods mostraram-se enormes perante a missão que tinham no palco principal, no entanto deixaram que o público tendesse mais para o soul de Algiers no palco secundário. A energética dupla tinha tudo para dar certo e entreteve muito bem a audiência que tinha – o seu rock divertido fez com que o público terminasse a entoar o nome da banda -, mas as grandiosas vocalizações de Jason Williamson não colmataram a vontade dos visitantes Courenses de ver algo diferente e não apenas Andrew Fearn a carregar num botão de um computador. A noite já se mostrava surpreendente, mas não tanto como quando Thee Oh Sees entraram em palco. Os americanos colocaram o rock puro em rock’n’roll, com uma potentíssima atuação que não deixou ninguém no recinto parado – um concerto que dificilmente será destronado, relembrando aos presentes porquê que este cartaz tinha tudo para ser histórico.
Mas a verdadeira história fez-se a seguir. Quando parecia que os Thee Oh Sees tinham esgotado toda a energia dos presentes, eis que chegam LCD Soundsystem e o público é inundado por uma nova dose de adrenalina. Durante duas horas, ninguém sentiu nada mais a não ser a voz de James Murphy, as destacadas teclas de Nancy Whang, e as constantes chamadas de nostalgia à medida que repesca êxitos como “Daft Punk is Playing at My House“, ou a facilmente identificável “Losing My Edge“. Sempre bem acompanhados por toda uma overdose de efeitos de palco, desde os vídeos filtrados no ecrã gigante em background até uma bola de espelhos, o anfiteatro natural das margens do rio Taboão pertenceu-lhes por uma noite. James Murphy não resistiu à viagem pelas memórias e relembrou a casa onde se estreou, em 2004: “We played here with Motörhead twelve years ago. So the rest of the set is for Lemmy” disse, num tom de quem gostaria de possuir uma máquina do tempo. Comoveram-se e comoveram o público com “New York I Love You But You’re Bringing Me Down”, acompanhada de uma vista sobre Nova Iorque como fundo. Para finalizar e para êxtase total dos ditos 24 mil presentes, “All My Friends” levou a que todo o Paredes de Coura cantasse junto, portugueses e estrangeiros, amigos e desconhecidos, todos sentiram o final daquele que irá com certeza ficar marcado como um dos melhores concertos que o Vodafone Paredes de Coura já teve o prazer de receber, uma das melhores combinações de bandas num dia de festival, daqueles que dá direito a fazer inveja a quem não esteve presente para ver a magnificência musical ocorrida em palco neste dia.
Com um segundo dia como este, era difícil prever o que poderia restar para os dois dias que ainda haviam de festival. Assim, e aliado à chuva que decidiu abençoar o evento de novo, o terceiro dia começou lentamente para os campistas. O palco principal abre com Kevin Morby, mas as atenções focam-se no palco Vodafone FM que premeia First Breath After Coma com a sua primeira atuação no festival, e Sean Riley & The Slowriders com o seu regresso aos palcos, diga-se, mais fortes do que nunca, e notoriamente as bandas portuguesas fizeram valer a sua presença no festival. Sean Riley trouxe consigo uma surpresa: Paulo Furtado, mais conhecido como The Legendary Tigerman, para os acompanhar com a sua guitarra durante alguns temas. Houve ainda tempo para uma homenagem a Bruno Simões, o baixista da banda desaparecido desde Junho deste ano.
E apesar de dizerem que magia não existe, não encontro outra palavra que descreva melhor o que aconteceu no palco principal. O indie pop dos Crocodiles entreteve o público presente, mas quando King Gizzard & The Lizard Wizard entraram em palco, passados 20 minutos das 21 horas, fizeram-se ouvir – e de que maneira! O seu estilo psicadélico e energizante foi o Red Bull que o público courense precisava num dia que começou escuro. A loucura instalou-se no recinto à medida que os australianos apostavam em batidas cada vez mais pesadas e na sua característica flauta transversal, e que consequentemente dava azo a cada vez mais “mosh” e crowdsurfing no público, o que neste festival começava a ser código da audiência para “estamos a adorar o que estamos a ouvir”.
E em seguida, de forma mais do que épica, eis que chega a hora de The Vaccines; mas o que se ouve em palco é um tema inequívoco. O genérico da série Game of Thrones é o que dá entrada à banda, como se os britânicos soubessem de antemão a noite memorável que iria ser. Gostaram demasiado da sua presença no festival há três anos atrás, e desta vez trouxeram consigo novos temas do seu quarto álbum de estúdio – pela reação do público, podem regressar quando quiserem. Desde “Handsome”, passando por “Post Break-up Sex”, e terminando com “Norgaard”, o público acompanhou sempre a banda numa onda de energia que parecia poder durar a noite inteira.
Mas a noite estava longe de terminar, e os britânicos cederam eventualmente o lugar no trono aos norte-americanos Cage The Elephant, sendo nesse exato momento que se deu a transformação de adjetivos: de noite muito boa para extraordinária. “This is my favorite festival in the whole world”, disse Matt Shultz fazendo as honras da casa, e se voltaram passados apenas dois anos de estarem no mesmo exato local, a frase deve ter alguma veracidade contida. A sua energia, porém, é que não há formas de ser contida; o vocalista podia ter as suas próprias estatísticas acerca de metros percorridos, pois quando canta Shultz é dono e senhor do palco. Brad Shultz, o guitarrista, deixou-se também apaixonar quase literalmente, saindo várias vezes do seu posto para se deixar ser assoberbado pelo público com abraços e até beijos. Uma setlist cheia de êxitos que o público acompanhou de forma soberba, sem deixar uma única música por cantar – seria fácil de prever que ninguém iria deixar escapar “Cigarette Daydreams”, “Too Late To Say Goodbye”, “Ain’t no Rest For The Wicked”; e o final, emotivo, deixou os membros da banda com olhares de espanto sobre todo o amor que estavam a receber, e ir embora só tinha mesmo de acontecer porque “we have to take a fight to Poland in one hour”, fez questão de explicar o próprio teclista. Naquele momento, Cage The Elephant era a melhor banda do mundo e Paredes de Coura não queria ver mais ninguém.
Depois destes dias intensos, só faltava descobrir como iria terminar o maior festival indie português. Nem um surto de gastroenterite que afetou algumas centenas de campistas deixou cair o espírito, mas as expectativas não estavam altas devido à comparação com a magnificência dos dias anteriores e o cansaço já acumulado do frio e noites mal dormidas. A abrir o palco principal estavam The Last Internationale, e logo a seguir os portugueses Capitão Fausto, numa missão muito ingrata e com pouca aderência devido à quantidade de campistas que quis aproveitar o máximo que pode o último dia no rio, para muitos, durante toda uma temporada. Quando chegou a vez de The Tallest Man on Earth já se verificava um relvado mais composto, que pôde ser testemunha do ritmo calmo de Kristian Matsson e o seu violão. O cantor e músico sueco deixou o palco encantado com o carinho do público, depois de ele próprio nos ter presenteado com, além dos seus êxitos, o tema “Sagres” escrito pelo próprio e inspirado na bela terra portuguesa. Uma atuação leve que permitiu até aos assistentes se manterem sentados no relvado do recinto. Do outro lado, não se pode deixar passar a interpretação dos Cigarettes After Sex que encerravam o palco Vodafone FM, uma das bandas mais esperadas para o dia e cujo ambiente intimista teve uma excelente adesão do público, deixando a dúvida se não começam a merecer um lugar no palco principal. Mas um dia que sucede os de LCD Soundsystem e de Cage The Elephant pedia muito, muito mais, e foram Portugal. The Man os esperados para alterar o ambiente – o que, de certa forma, se verificou.
Os americanos já estavam em dívida com o festival, e levantaram o astral até dos mais exaustos, levando aos (neste ponto já habituais) mosh e crowdsurfing já imagem de marca dos concertos mais animados desta edição. O grupo de John Baldwin Gourley tocou o seu rock em variadíssimos tons, com tempo tanto para os clássicos como “Modern Jesus”, e ainda para uma versão cover de “Don’t Look Back In Anger” de Oasis, terminando com “Purple Yellow Red Blue” que não deixou ninguém parado. Mais uns apaixonados por Paredes de Coura, relembrando a última vez que tinham feito parte deste festival: “we played here back in 2009, and as a fan this is the best show I’ve ever been to”.
Para apagar as luzes do palco principal por mais um ano, coube a Chvrches mostrar que Lauren Mayberry não é só mais uma carinha bonita e que o tecnopop do grupo escocês era mais do que capaz de dar conta do recado; não desiludiram os festivaleiros que ainda encontraram uma réstia de energia para os ver, muito firmes e energéticos, com tempo para uma congratulação pela vitória de Portugal no Euro 2016 o que agrada sempre ao público português, mas não sendo o que se esperava de uma atuação final de um festival com a grandiosidade e qualidade que já tinha sido vista nesta edição. Ainda assim, Chvrches deixam a hipótese de voltar, se Coura os quiser, terminando com: “Have a rest of a great night and we’ll see you on album three”.
No total, cerca de 100 mil pessoas passaram pelas margens do rio Taboão. A edição de 2016 do festival não desiludiu, e não tendo um cataz exuberante à partida conseguiu ter momentos memoráveis e outros que ficarão na história. O habitat natural da música fechava por mais um ano, mas deixava no seu relvado um misto de emoções e a ideia de que se houvessem bilhetes à venda para o Vodafone Paredes de Coura 2017 na porta de saída, alguns passes gerais já teriam sido vendidos. De qualquer forma uma coisa é certa: os seus habitantes anuais vão voltar a casa.
A edição do Vodafone Paredes de Coura de 2017 já está marcada: 16, 17, 18 e 19 de agosto!
Texto: Ana Rodrigues
Fotografias: Hugo Lima