A Volta ao Mundo em 80 Filmes | Parte IX
Nesta penúltima parte, a volta ao mundo do cinema apresenta-nos a tragicomédias romenas, épicos russos, miniaturas singapurenses, sonhos tailandeses e muito mais.
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ROMÉNIA
A Morte do Sr. Lazarescu (2005) de Cristi Puiu
No panorama do cinema europeu, mais nenhum país teve um movimento cinematográfico com mais importância na última década que o Novo Cinema Romeno, cujo reconhecimento global começou com esta peculiar obra-prima de Cristi Puiu. No seu país de origem, A Morte do Sr. Lazarescu foi promovido como uma comédia apesar de ter sido concebido com base numa polémica notícia sobre um idoso que, depois de uma noite de negligência hospitalar, foi deixado no meio da rua pelos funcionários da sua ambulância e acabou por morrer ao relento. O final do filme não é tão misantropo como a realidade, mas isso não implica que o filme seja algo classicamente assumido como uma comédia. Aliás, a única razão para essa classificação devem do absurdo total que rege a história do filme e sua dissecação de um sistema de saúde incompetente e desumano. Esta é uma obra de doloroso visionamento que, mesmo assim, é cinema essencial na sua mais pura forma, um milagre de realismo audiovisual, uma venenosa sátira e um retrato humano da mais abrasiva franqueza imaginável.
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RÚSSIA
Andrei Rublev (1966) de Andrei Tarkovsky
Desde a sua abertura, que é a mais grandiosa celebração de criatividade enlouquecida já filmada, passando por visões épicas como a invasão e pilhagem de uma cidade medieval, até à simples beleza de ver o êxtase da cor desabrochar no seu potente epílogo, Andrei Rublev é uma das indiscutíveis obras-primas do cinema mundial e um filme que devia ser de visionamento obrigatório para qualquer cinéfilo – correção, para qualquer ser humano. Apesar deste filme de Andrei Tarkovsky ser, a uma primeira análise, um biopic sobre um pintor de ícones na Rússia do séc. XV e uma construção de cinema espiritual fortemente ligado ao Cristianismo Ortodoxo, não estamos perante uma obra que se deixe limitar pelos usuais dogmas destes subgéneros. Pelo contrário, Tarkovsky rompe com a convenção com uma magnificência aterradora, criando um filme com um ritmo glacial que consegue, mesmo assim, ser uma experiência transcendente na medida que pouca arte é. Numa nota final, há que referir como o filme está dividido em capítulos e que o segmento focado na fundição de um sino termina com um dos mais devastadores momentos de catarse na história deste meio.
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SENEGAL
Moolaadé (2004) de Ousmane Sembène
O senegalês Ousmane Sembène é um dos mais importantes nomes do cinema africano e o seu último filme foi um verdadeiro testamento à sua grandeza, assim como à magnificência da produção cinematográfica desse continente tantas vezes esquecido mesmo pelos mais empenhados cinéfilos. Moolaadé relata a história de Collé, a segunda e preferida esposa de um homem que vive numa zona rural do Burquina Faso, e sua proteção de um grupo de raparigas que lhe pedem auxilio de modo a evitarem a mutilação genital que lhes é exigida pela sociedade e tradições locais. Como se pode perceber pela descrição sumária do seu enredo, esta é uma obra que lida com importantes temas e de uma perspetiva necessária, mas a genialidade do filme vai muito mais além que a sua militância, sendo que este é um perfeito exemplo de uma obra onde a composição e o uso da cor são tão importantes como o mais longo dos monólogos. A ajudar a tudo isto temos um registo rítmico e interpretativo que dá primazia à quietude que vibra com energia ameaçadora e que quase lembra o teatro de Brecht no seu uso de declarado artificio como veículo para o acutilante ativismo político.
SÉRVIA
Era Uma Vez Um País (1995) de Emir Kusturica
A obra que valeu a Emir Kusturica a sua segunda Palme d’Or em 1995 causou tanta adoração crítica como indignação política aquando da sua estreia. Esta obra controversa foi filmada durante o auge dos conflitos bélicos que assolaram a antiga Jugoslávia e retrata seis décadas da complicada história política dessa nação através de uma insólita narrativa tão bizarra que qualquer tentativa de a sumarizar é fútil e cuja estranheza é de tal ordem que todo o projeto se poderia chamar uma extravagância surrealista. Mesmo para quem sente desprezo pelas ideologias subjacentes ao seu argumento e defendidas por Kusturica, Era Uma Vez um País é cinema imperdível, nem que seja pelo modo como o cineasta retrata a guerra como um circo de horrores onde o caos é a única constante e onde um casamento subterrâneo completo com chimpanzés e uma sensual dança em cima de um tanque de guerra são dos momentos mais discretos do filme. Esta é uma obra perversa, grotesca, desavergonhada e portadora de uma escala épica que quase nunca se vê associada a este tipo de louco cinema de autor.
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SINGAPURA
Ilo Ilo (2013) de Anthony Chen
Ponderar que Ilo Ilo é a primeira longa-metragem do seu realizador, Anthony Chen, é algo assombroso e quase inacreditável. Como é possível que este cineasta tenha conseguido capturar com tanta delicadeza uma realidade tão modesta, vivida e humana sem nenhuma sombra de insegurança ou vistosa experimentação estudantil? Bem, a obra final é prova dos seus talentos e é também uma fabulosa miniatura doméstica sobre uma família de Singapura que, durante a crise financeira que assolou a Ásia nos anos 90, recebe a companhia de uma nova empregada a tempo-inteiro vinda das Filipinas. Não há nada de enfaticamente dramático nesta história, mas o humanismo que transparece por todo o projeto é precioso, especialmente quando consideramos a franqueza com que a família é observada, mesmo nos seus momentos mais feios. Caracterizado por uma gentileza sublime, Ilo Ilo conta ainda com um perfeito trabalho de elenco, com especial destaque para as prestações de Yeo Yann Yann e Angeli Bayani como a matriarca e a nova doméstica respetivamente.
SÍRIA
Água Prateada – Um Auto-Retrato da Síria (2014) de Ossama Mohammed e Wiam Bedirxan
Com a atual crise dos refugiados, parece que muitas pessoas olham a destruição da Síria como apenas uma abstração distante sobre a qual não há necessidade de estender o nosso olhar ou preocupação. Para essas pessoas, mas também para todos os que adorem cinema ou tenham interesse nas experiências humanas por detrás das manchetes dos jornais, existe Água Prateada, uma verdadeira explosão de inovação cinematográfica. Construído entre a França e a Síria a partir de e-mails e vídeos postados nas redes sociais, este projeto de Ossama Mohammed e Wiam Bedirxan, este é um projeto com uma ambição tão astronómica como arriscada. Este é, efetivamente, um auto-retrato de uma nação a passar por um inferno e filmado pelas próprias pessoas desse país e não por um olho esteta e estudado. Há que sublinhar também que, a acompanhar o desfile de horrores, estão uma contracorrente de humanismo profundo e uma natureza lírica que transmutam todo o projeto numa espécie de elegia poética em forma de filme. Original, transgressivo e inovador este é um pesadelo cinematográfico que todos deviam experienciar, por muito doloroso que seja.
SUÉCIA
A Máscara (1966) de Ingmar Bergman
Apesar de décadas de complexas teorias académicas e dissecações críticas, A Máscara de Ingmar Bergman continua a ser uma obra praticamente inclassificável. De certo modo, parece que todo o cinema está contido neste milagre em celuloide, explodindo em todas as direções e devastando todas as convenções que já existiram, que existem e que ainda estão para ser inventadas. Apreciado principalmente como um estudo e desconstrução de identidade, tanto a nível concreto como abstrato, esta criação superficialmente sobre a relação entre uma enfermeira e uma atriz que misteriosamente perdeu a capacidade de falar é tão inescrutável como a figura desconcertante de Liv Ullmann como a mulher muda. Esta é a apoteose do modernismo no cinema, e quase o nascimento violento do pós-modernismo, com o próprio filme a tentar dissecar a sua existência e desconstrui-la, culminando em algo horrível e assustador – o vazio, a possibilidade que nada tem sentido, definição ou propósito. E tudo isto a nível concetual, pois se começarmos a falar do trabalho de Ullmann e Bibi Andersson ou a sublime fotografia e montagem, nunca mais este texto terá fim.
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TAILÂNDIA
Febre Tropical (2004) de Apichatpong Weerasethakul
Apichatpong Weerasethakul, mais conhecido como Joe para qualquer pessoa que tente dizer o sue nome em voz alta, é um dos mais singulares cineastas da atualidade e o seu cinema é tão original como é difícil e misterioso. Nesta sua obra de 2004, o tailandês construiu uma das suas usuais narrativas bifurcadas onde o misticismo do seu folclore nacional se funde com um casual surrealismo típico da sua abordagem autoral, resultando numa inebriante exploração dos limites entre desejo erótico e afeto fraternal e entre homem e animal. Mais nenhum filme nesta lista tem um babuíno falante ou uma cena prolongada que basicamente consiste num caçador a olhar fixamente para um tigre em aparente diálogo psíquico e por isso esta obra exige a nossa atenção. Quase mais nenhum autor contemporâneo se atreve a ser tão hermético no seu estilo como este tailandês e, apesar de poder ser frustrante não entender todo o simbolismo das suas criações, os seus filmes são sempre fascinantes. Ver Febre Tropical é como testemunhar o sonho de outra pessoa, ou melhor, é como observar o delicado desabrochar de um possível romance e depois experienciar uma alucinação sonhada sobre os mesmos temas.
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A nossa volta ao mundo termina na próxima parte, onde poderás encontrar o épico histórico mais silencioso e gentil já filmado, assim como uma exploração existencial das paisagens turcas e o horror de um plano sequência numa casa muda.