Festa do Cinema Francês ’22 | Vortex, em análise
Na Festa do Cinema Francês, a programação Segunda Chance traz filmes já estreados de volta às grandes salas para que possam ser reapreciados pela audiência francófila. “Vortex” de Gaspar Noé é um dos melhores títulos selecionados, afirmando-se como uma das fitas mais arrojadas do ano, tanto a um nível técnico quanto temático, até emocional. Dario Argento e Françoise Lebrun protagonizam a obra que já passou por vários festivais em todo o mundo, desde Locarno a Istanbul.
Gaspar Noé há muito se afigura enquanto rei da provocação, um proponente da extremidade do cinema francês no que se refere ao maximalismo estético e brutalidade do conteúdo. Seus filmes parecem alucinações de estilo garrido, sonhos feitos pesadelo pelo advento de hedionda violência e tabus quebrados. “Irreversível” tem uma das cenas mais viscerais já dramatizados sobre o assunto da agressão sexual, “Enter the Void – Viagem Alucinante” explora espiritualismos inusitados através de prismas psicotrópicos e relações incestuosas. “Love” teve esperma a voar pelo grande ecrã em 3D, enquanto “Clímax” tornou uma festa de dança num exorcismo enlouquecido com homicídio e droga à mistura.
Enfim, trata-se de um autor que definiu a carreira enquanto uma série de provocações, gestos que procuram a transcendência do choque e usam toda uma cornucópia de truques audiovisuais para do cinema fazer circo. Dito isso, passados anos, o que era irreverente começa a saber a rotina e a transgressão fica convencional. Quiçá o caminho para o verdadeiro choque seja a contradição do maximalismo, o repúdio do lúrido, do desnecessário e extravagante. Noé assim forja o caminho para um novo cinema-choque, onde a honestidade pura e dura é a chave para o transtorno. Por isso mesmo, “Vortex” é capaz de ser o seu trabalho mais inquietante até à data.
Longe do hedonismo estilhaçado da filmografia passada, a ideia basilar do novo filme é bem simples. Trata-se de uma meditação sobre a morte, despida de romantismos ou eufemísticos desolhares, subterfúgios negados e verdades duras postas a nu. Afinal, não há experiência mais universal que o fim para o qual todo o ser vivo está destinado. Se tivermos a sorte de chegar a idade avançada, então temos de nos confrontar com o corpo e mente no precipício do oblívio, organismo desabando como a ruína arqueológica e o pensamento escapando-nos por ente os dedos. É tragédia, mas também é marca da maravilha que é a vida – não que “Vortex” tenha grandes vertentes otimistas ou vontade de reconfortar o espetador.
Assim que os créditos se desenrolam, mesmo antes da ação ter início, já Noé nos força a refletir sobre a mortalidade, sobre o passar do tempo. Ao invés de listar os artistas em jeito vulgar, o realizador inclui datas com cada nome. São o ano de nascimento dos atores e das suas personagens também, um ponto no relógio metafórico que faz tique-taque a todo o momento. Estamos todos agrilhoados a esta bomba-relógio e para apreciar as dores e as belezas de “Vortex,” há que manter essa ideia presente, clara na consciência e próxima do coração. Essa reflexão que a forma dos créditos promove também tem um efeito curioso no modo como nos relacionamos com as personagens e seus intérpretes. De alguma forma, aquele detalhe da idade, da data específica, torna tudo mais real.
Seguindo-se a este espicaçar cruel e delicado em simultaneidade paradoxal, a narrativa tem início. É claro que chamar-lhe narrativa pode ser erróneo. Estamos perante um objeto de dramaturgia observacional onde nada de especial acontece além do quotidiano pacato de dois idosos a viver num apartamento parisiense. É aí que “Vortex” começa, num dia de lucidez mútua e felicidade partilhada entre um homem e uma mulher sem nome – a recusa nessa identificação típica tem efeito universalizante na fita, mas também sublinha quanto a câmara é uma intrusa na realidade pacata das figuras. Bebendo um vinho ligeiro entre as flores do terraço, sorrindo em momento de calma e relaxe, eles saboreiam o último instante de sossego que o filme lhes irá proporcionar.
À noite, ela acorda repentinamente, olhos vagos naquele jeito confuso da pessoa demente. Poderia ser um apontamento passado despercebido não fosse a transformação do ecrã. Perante o olhar do espetador, uma imagem divide-se em dois, um split-screen que permanecerá assim durante todo o restante filme. Cada câmara foca-se numa figura, fragmentando até o ato de dormir na mesma cama. Em certa medida, o definhar díspar dos dois seres assim os separa, deixando o marido num estado de irritação frustrada enquanto a esposa vai desaparecendo para dentro de si mesma. A manhã seguinte é uma sequência que treina o espetador, deixando-nos acostumar ao engenho de Noé.
Para complementar o ecrã bifurcado, o diretor de fotografia Benoît Debie privilegia longos takes com a câmara movendo-se ao mesmo ritmo dos protagonistas. É lento e glacial, mas sempre com propósito imersivo. Em termos de montagem, cada mudança de plano é marcada por alguns fotogramas retirados quando a transição ocorre, deixando explosões de vazio entre respirações. Há algo de Brechtiano no mecanismo, mas também se sente uma afinidade entre a mesa de montagem e a subjetividade moribunda das personagens. A cenografia de Jean Rabasse, por seu lado, dá-nos os detalhes pessoais que o argumento ofusca, pintando duas vidas compridas e detalhadas através do décor. Os estudos cinematográficos dele são expostos em livros e posters nas paredes, enquanto o passado dela se esboça nas fotografias e peças de arte perdidas no apartamento.
Numa história onde nada acontece, mas tudo está sempre a mudar numa degradação gradual, o apartamento é a única constante, a única âncora. Por isso mesmo, as cenas finais de “Vortex” magoam tanto. Aí, até a memória física destas pessoas é condenada ao esquecimento. Não querendo revelar demais sobre este verdadeiro épico de quase duas horas e meia, fica o ponto de comparação com obra semelhante. Já foram muitos os críticos a definir “Vortex” como uma nova versão do “Amour” que valeu a Michael Haneke a Palme d’Or em 2012. As semelhanças são óbvias, mas há um rigor formalista mais intenso no novo filme, assim como uma maior ênfase na contemplação antidramática. Por tudo isso, é uma experiência que tanto se afigura seca como sentimental, uma contradição que faz todo o sentido. Por outras palavras, chegado o fim da fita, poucos serão aqueles sem lágrimas nos olhos.
Vortex, em análise
Movie title: Vortex
Date published: 2 de November de 2022
Director(s): Gaspar Noé
Actor(s): Françoise Lebrun, Dario Argento, Alex Lutz, Kylian Dheret, Vuk Brankovic, Charles Morillon, Kamel Benchemekh, Frank Villeneuve
Genre: Drama, 2021, 142 min
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Cláudio Alves - 88
CONCLUSÃO:
“Vortex” provoca pela franqueza com que confronta as realidades mais essenciais da experiência humana. Gaspar Noé aqui assina um poema sobre o fim dos dias, apelando ao lirismo de corpos rimados e fados comungados.
O MELHOR: O engenho do realizador, o modo como aborda a história da morte inevitável através de lógicas formalistas. Já em “Lux Aeterna” ele tinha explorados as possibilidades do split-screen perpetuado, mas “Vortex” parece-nos uma maturação definitiva desse estilo.
O PIOR: Trata-se de uma obra-prima difícil de ver, tão bela quanto dolorosa. Por vezes, é difícil concluir se todo o tormento é justificado.
CA