"A Voz do Amor" | © NOS Audiovisuais

Festa do Cinema Francês ’22 | A Voz do Amor, em análise

Valérie Lemercier conquistou o César para Melhor Atriz com “A Voz do Amor,” uma cinebiografia bizarra sobre a vida de Céline Dion. Intitulado “Aline” no original francês, esta obra cambaleia entre paródia e sinceridade, sendo um dos projetos mais peculiares em exibição na Festa do Cinema Francês. No festival, a fita integra a programação Segunda Chance, onde filmes já estreados nas salas portuguesas são novamente exibidos num gesto que promove a reapreciação e redescoberta.

O cinema mainstream sempre teve uma predileção especial pela biografia feita entretenimento de massas. Assim é desde o princípio de Hollywood, mas, nos últimos anos, parece que este tipo de filme tem vindo a tornar-se cada vez mais comum. O mercado está saturado, tanto de cinebiografias como de mediocridade atroz, sendo que só alguns artistas parecem dispostos a desvendar as possibilidades aventurosas deste subgénero. Enfim, enquanto associações como os Óscares continuarem a premiar atores pelo jeito de imitação e os bilhetes forem vendidos, nada vai mudar.

a voz do amor critica festa do cinema frances
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É nesta conjetura popular, onde a falência criativa reina suprema, que Valérie Lemercier emerge enquanto uma das mais estranhas vozes no frenesim do biopic. Se não fosse o tom de embevecida sinceridade que engloba todo o projeto, diríamos mesmo que “A Voz do Amor” era uma paródia acídica cujo objetivo é evidenciar a falsidade deste cinema, seu vício do cliché e da vida comercializada. Certamente, o primeiro ato do filme remete para o surrealismo mais vil que se pode imaginar, uma banalidade retorcida pelo casting até se afigurar em forma de pesadelo.

Admitimos que chamar a isto surreal pode ser exagero, mas é essa a palavra que nos vem à cabeça quando ponderamos a atriz-realizadora na casa dos quarenta a interpretar uma versão de Aline na escola primária. Trata-se da inspiração sonhadora do esforço naïf, algo que poderia saber a incompetência não fosse a sua versão final tão deliberadamente grotesca. Mas, antes de avançarmos na descrição, quiçá seja necessário algum esclarecimento. “A Voz do Amor” retrata a vida de uma cantora chamada Aline Dieu que, em tudo menos no nome, é uma cópia exata de Céline Dion.

A biografia não autorizada é estranhamente fiel aos detalhes reais, usando a licença criativa para reforçar o absurdo estilístico mais que a insanidade narrativa. Nos seus melhores momentos, o exercício alcança uma tonalidade reminiscente do cinema de Verhoeven em Hollywood. Ou seja, transforma-se numa espécie de tratado contra a cinebiografia, uma anti-biopic que evidencia, em toda a escolha prática, uma capacidade para descobrir a pior maneira de filmar qualquer cena, desde a paixoneta adolescente à performance nos Óscares.

Assim seria porventura se Lemerciar demonstrasse qualquer capacidade para a ironia. Ao invés, ela aborda o projeto com uma veia lamechas e a atitude de um miúdo teatreiro, insuflado de entusiasmo e pouco bom-senso. Parte do problema devém de um desequilíbrio de impulsos e vontades, a tentativa de aparente sátira de mãos dadas com uma afetuosa carta de amor por parte de uma fã ao seu ídolo. Quiçá esta natureza em balanço precário e execução disfuncional pudessem resultar se a tela da artista fosse menor, se a longa fosse curta-metragem.

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Uma duração decrescida poderia ajudar, por exemplo, a evitar a exaustão do espetador que, ao fim de duas horas, já pode estar cansado de ver a mesma estratégia repetida ad nauseam. Não há profundidade textual que sustente o ciclo vertiginoso e as considerações sobre Dion enquanto pessoa e personalidade pública são demasiado superficiais para fazerem a diferença. Uma predominância de cenas curtas, enfiadas entre montagens apressadas, não ajuda, causando a impressão de que nem Lemercier sabe bem o que quer dizer sobre seu sujeito. Talvez ela mesma esteja ambivalente face à cantora.

Só que a ambivalência em cinema depende de precisão para suceder, uma qualidade em falta nesta biografia que, ocasionalmente, lá é tão má que é boa, um paradoxo de genialidade cómica. No que se refere ao trabalho de Lemercier em frente às câmaras, sua caracterização de Aline Dieu é como um sketch do Saturday Night Live no melhor e pior sentido dessa expressão. Não lhe daríamos um César, mas reconhecemos o apelo estranho desta caricatura, como um holofote a brilhar sobre a futilidade da cinebiografia enquanto conceito e pesquisa psicológica. Quando se retorce em forças transgressoras, “A Voz do Amor” triunfa, mas até no fracasso é um daqueles trabalhos tão únicos que têm que ser apreciados por todo o cinéfilo. Há que ver para crer.

A Voz do Amor, em análise
A Voz do Amor

Movie title: Aline

Date published: 3 de November de 2022

Director(s): Valérie Lemercier

Actor(s): Valérie Lemercier, Sylvain Marcel, Danielle Fichaud, Roc Lafortune, Antoine Vézina, Pascale Desroches, Sonia Vachon, Alain Zouvi, Marc Béland, Jean-Noël Brouté, Victoria Sio

Genre: Biografia, Comédia, Drama, 2020, 126 min

  • Cláudio Alves - 50
50

CONCLUSÃO:

Valérie Lemercier é Céline Dion é Aline Dieu numa das cinebiografias mais enlouquecidas da memória recente, uma caricatura paródica que conjuga amor e gozo num cocktail que pode resultar em embriaguez resvalando em loucura. “A Voz do Amor” é uma anti-biografia eufórica, tão má que é boa, tão bizarra que se torna em visionamento obrigatório.

O MELHOR: Os figurinos são um elemento que resiste à disfunção técnica e desequilíbrio de ideias.

O PIOR: A montagem rouba muito fôlego a este musical diegético, tanto no momento do êxtase da canção como na corrida pelos momentos na vida da sua heroína.

CA

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