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Yoon, em análise

A Zero em Comportamento dá a conhecer “Yoon”, a mais recente obra da dupla de realizadores Pedro Figueiredo Neto e Ricardo Falcão!

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Esta semana estreia-se em sala, e pela mão da ZERO EM COMPORTAMENTO, um interessante documentário intitulado YOON, 2021, vocábulo que na língua wolof (usada por mais de cinco milhões de pessoas no Senegal, Gâmbia e Mauritânia), significa caminho, lei, norma, religião, ou simplesmente VIAGEM. Este road movie foi realizado por uma dupla de jovens cineastas, Pedro Figueiredo Neto e Ricardo Falcão. E que viagem vem a ser esta? Trata-se na verdade de uma entre muitas que, para os devidos efeitos cinematográficos, surge agora aos nossos olhos como a história eleita de entre as que já muitas vezes foram vividas pelo senegalês Mbaye Sow que, num belo dia cinzento e num bairro periférico de Lisboa, vemos atafulhar uma Peugeot 504, um chaço a precisar de reforma, com sacos, saquinhos, sacões e diversos produtos que, por vontade própria ou por encomenda, irá distribuir ao longo de quatro mil quilómetros, ou seja, a distância que separa Portugal do Senegal.

LISBOA-DAKAR-LISBOA, EM QUATRO RODAS E UM FURO…!

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Depois de o vermos arrumar as ditas malas naquele jeito de meter o Rossio na Betesga, Mbaye Sow arranca estrada fora, e nessa altura os autores convidam-nos a entrar no espírito desta sua proposta fílmica, posicionando-nos quase sempre no chamado lugar do morto. Neste caso, sendo a nossa função de espectadores exercida na cumplicidade e aceitação do mapa a seguir para atingir o desejado destino. Procurando reforçar essa mesma cumplicidade, seremos impelidos a olhar de frente para a estrada, para as suas curvas e contra-curvas (se fosse num rally, diríamos no papel de um co-piloto). Tudo para sentirmos o ritmo e as peripécias de uma deslocação que na aparência roça a pura e dura aventura. Pelo meio damos conta de um pneu furado, situação que era mais do que esperada dado o estado de conservação do veículo. Em suma, pouco a pouco, no modo como os autores nos dão a verdade inerente aos acontecimentos e rotinas daquela odisseia, sentimos como nossa aquela viagem, sentimento reforçado pela confiança depositada no olhar atento do homem do leme, neste caso, o senhor do volante que assume a alma de viajante com inegável segurança. Na verdade, será este perfil de maturidade que nos ajuda a partilhar o bom fim da deslocação, mesmo que saibamos que não se podem descurar os cuidados inerentes a conduzir um carro por estradas que parecem nunca mais acabar, repletas de obstáculos naturais e não só. Entretanto, aquele que já consideramos o nosso homem, Mbaye Sow, recebe e envia mensagens verbais de interlocutores situados algures, quer sejam amigos, conhecidos ou familiares. Destacam-se por serem muitas as chamadas da mulher e as referências ao filho que umas vezes fala, outras vezes está ausente em brincadeiras que adivinhamos serem as do dia-a-dia de uma criança. E aqui começamos a perceber aquele que poderia ser um dos pontos fortes de YOON. De facto, quilómetro após quilómetro e sequência após sequência, ficamos a saber algo mais da vida e do contexto familiar de Mbaye Sow. Ficamos a saber algo mais sobre os singelos pedidos lúdicos que recebe, assim como os de natureza prática, que se cruzam com outros mais reservados. Mas ouvimos igualmente os avisos de alerta, que alguns julgam pertinentes, sobre os perigos que o viajante pode encontrar no caminho. Particularmente interessante será o momento em que o senegalês ouve a chamada de um interlocutor que refere a possibilidade de, lá para os lados da Mauritânia ou na passagem pelo Sáara Ocidental, poder suceder algo de grave como já sucedera a outros motoristas, ou seja, um ataque de puro banditismo rodoviário. Não fica muito claro se as palavras que ouvimos se referem a actos mais ou menos guerrilheiros, o que não seria de admirar numa região onde a Frente Polisário combate há longos anos a ocupação por parte de Marrocos do Sáara Ocidental, mas o simples facto de se perspectivar a possibilidade de uma acção violenta, qualquer que fosse a motivação, permite gerar um clima de suspeição que nos desperta os sentidos e se mantém latente até que, a certa altura, num segmento da estrada ladeado pelo imenso e infindável deserto, aparecem dois jovens saarauís que, aparentemente, só queriam água para eles e para o radiador do carro em que viajavam. Na verdade, este e outros expectáveis incidentes, sobretudo quando se atravessam algumas fronteiras e regiões particularmente vulneráveis, são o motor que nos faz acompanhar com maior interesse o percurso de um cidadão comum numa viagem extraordinária. Iremos segui-lo através dos passos perdidos de realidades muito diversas do ponto de vista social, económico, político e cultural que, afinal, não se encontram do outro lado do mundo, mas a poucas horas de avião para quem vive na zona de conforto europeia e sobrevoa muitas vezes com alguma indiferença os problemas das populações africanas mais próximas, ou a uns dias de carro para os que não possuem alternativa mais segura ou financeiramente viável, nomeadamente quando o primeiro objectivo das suas deslocações se prende com o envio para as populações desfavorecidas de um conjunto de produtos e bens que simbolizam o progresso e o bem-estar dos países ditos mais desenvolvidos.

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Nas suas linhas gerais, YOON pode ser encarado como um exercício de cinema sobre a dialéctica Norte-Sul, que podia adquirir mais peso no contexto do retrato das idiossincrasias e contradições inerentes aos diferentes povos e rostos que nele participam se, por exemplo, a banda sonora das mensagens recebidas e enviadas fosse, na necessária síntese da sua diversidade, a matéria primordial para se contar a história de Mbaye Sow e, naturalmente, dos que como ele arriscam a vida para levar aos seus iguais aquilo que identificam de forma directa ou indirecta como símbolos materiais do outro, o privilegiado. No contexto deste expediente existencial, significativo será o facto de constatarmos que Mbaye Sow acarta na ida os produtos de marca do capitalismo e da suposta abundância primeiro-mundista. Na vinda, e no espaço da bagageira que fica vazio, empilha uma boa quantidade de máscaras africanas, legado de uma herança cultural que uma vez na Europa irá acabar no chão de uma qualquer feira da ladra. Talvez seja útil perguntar se a exposição mercantilista daquela mercadoria, longe do seu espaço original de produção, pode ser vista como a representação de uma arte genuína. Será? Ou será antes, pelo modo como a vemos ser adquirida no Senegal, um artesanato já adulterado pelo fabrico em série, um negócio como qualquer outro, o reverso de uma medalha que no fundo se destina a perpetuar uma falsa imagem de marca local com umas pitadas de exotismo, ao gosto dos que querem possuir um objecto estrangeiro que julgam único e raro. Enfim, muitas vezes, nada mais do que uma ilusão, como a importância dada a um par de sapatos de marca, associada a um duvidoso estatuto civilizacional, que Mbaye Sow deixou pelo caminho num posto de fronteira, por razões que nunca serão reveladas, mas cuja eficácia em futuras viagens não nos custa adivinhar.

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Yoon, em análise
Yoon

Movie title: Yoon

Date published: 3 de May de 2023

Director(s): Pedro Figueiredo Neto & Ricardo Falcão

Actor(s): Mbaye Sow

Genre: Documentário, 2021, 84 min

  • João Garção Borges - 60
60

Conclusão:

PRÓS: Sente-se uma caução de verdade no modo como os autores de YOON registaram este autêntico diário de bordo, relato de uma viagem mais arriscada do que difícil, um exercício de resistência e persistência através do que resta do continente europeu antes de se atravessar para a margem Sul do Mediterrâneo e, posteriormente, ao longo de algumas das parcelas menos conhecidas, apesar de não muito distantes, do continente africano: o Magreb e o deserto marroquino, o Sáara Ocidental e a porta de entrada setentrional, quer no Senegal, quer na chamada África negra. Essa verdade, que rima com sinceridade, constitui razão suficiente para recomendar uma visão solidária e atenta de YOON, projecto concebido por dois realizadores que, mesmo revelando alguma fragilidade na articulação de uma estrutura fílmica que potencializasse as qualidades inerentes ao corpo áudio e visual registado por eles próprios on the road, conseguiram levar a bom porto a sua corajosa proposta de antropologia cinematográfica.

No DOCLISBOA de 2021 recebeu o Prémio Lugares de Trabalho Seguros e Saudáveis, patrocinado pela Agência Europeia para a Segurança no Trabalho.

CONTRA: Nada que impeça a visão que vos proponho no campo anterior.

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