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Carta de Amor, em análise

“Carta de Amor”, de Kinuyo Tanaka, é uma das obras da cineasta em destaque no ciclo organizado por The Stone and the Plot!

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Nasceu em Shimonoseki, Prefeitura de Yamaguchi (Japão), a 29 de Novembro de 1909. Faleceu a 21 de Março de 1977. Toda a sua vida foi desde cedo marcada pela associação ao mundo das artes e do espectáculo. No plano musical, chegou mesmo a ser intérprete de biwa, instrumento de cordas japonês parecido com um alaúde. Todavia, distinguiu-se com particular incidência na activa e sólida indústria cinematográfica nipónica onde se destacou, primeiro como actriz e, durante o curto período de quase uma década (1953-1962), como realizadora, passagem breve se considerarmos o histórico de sucesso e longevidade da sua mais ampla e completa relação com a sétima arte, no interior do sistema de produção dos diferentes estúdios por onde deixou obra feita e em que se destaca a colaboração com os grandes realizadores para quem foi muitas e justificadas vezes considerada uma figura maior da representação no seu país natal, onde alcançou um estatuto equivalente ao das stars, as estrelas de outras realidades e firmamentos cinematográficos.

KINUYO TANAKA, OS FILMES DA SUA VIDA ENQUANTO REALIZADORA…!

Carta de Amor
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Estamos a falar de Kinuyo Tanaka, rosto impossível de dissociar das grandes obras e dos mais vibrantes momentos da filmografia do Japão, de que destaco, como meros exemplos entre os cerca de trezentos que poderia citar, filmes como JOYU SUMAKO NO KOI (O AMOR DA ACTRIZ SUMAKO), 1947, YORU NO ONNATACHI (MULHERES DA NOITE), 1948, WAGA KOI WA MOENU (CHAMA DO MEU AMOR), 1949, OYU-SAMA (MISS OYU), 1951, MUSASHINO FUJIN (A SENHORA DE MUSASHINO), 1951, SAIKAKU ICHIDAI ONNA (A VIDA DE OHARU), 1952, e o sempre venerado UGETSU MONOGATARI (OS CONTOS DA LUA VAGA), 1953, qualquer deles realizado pelo mestre Kenji Mizoguchi. Mas não posso deixar de incluir os filmes sublimes que interpretou com o sublime Yasujiro Ozu, TOKYO NO ONNA (MULHER DE TÓQUIO), 1933, KAZE NO NAKA NO MENDORI (UMA GALINHA NO VENTO), 1948, e MUNEKATA KYODAI (AS IRMÃS MUNEKATA), 1950. Finalmente, seria imperdoável não referir as suas participações em filmes de realizadores com indeléveis provas dadas como, entre outros, Heinosoke Gosho, Keisuke Kinoshita, Mikio Naruse e Daisuke Ito. E, nota importante, incidi nesta rápida exposição introdutória apenas nos nomes que mais me dizem e que acompanharam a carreira da actriz Kinuyo Tanaka, e em alguns dos mais significativos filmes produzidos até aos primeiros anos da década de 50, quando assumiu a cadeira da realização, profissão onde na altura não era fácil nem frequente encontrar uma mulher. Na verdade, nem no Japão nem em parte nenhuma do mundo. Kinuyo Tanaka foi, aliás, a segunda realizadora na História do Cinema do Japão a assumir essa responsabilidade, logo após a prestação de Tazuko Sakane (1904-1975), que se notabilizou sobretudo durante o conturbado período da ascensão das forças nacionalistas e imperialistas e nos anos mais severos da Segunda Guerra Mundial.

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Carta de Amor
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Numa nova e louvável iniciativa da produtora e distribuidora THE STONE AND THE PLOT, a partir do próximo dia 6 de Abril de 2023 poderemos descobrir ou revisitar os primeiros filmes realizados por Kinuyo Tanaka, naquilo que será, para já, a Primeira Parte da Retrospectiva Integral da sua obra: a saber, seis filmes de longa-metragem divididos por duas datas de estreia que merecem ser agendadas por parte de quem se interessa pela fruição do melhor cinema do mundo e não vive cercado por preconceitos culturais nem fronteiras redutoras. Trata-se aqui e agora de encontrar disponibilidade para um olhar atento e igualmente solidário com o esforço de programação alternativo que contraria, dentro dos possíveis, o muitas vezes rotineiro e insonso circuito comercial das salas. Filmes que serão, um a um, objecto da minha melhor atenção.

INTEGRAL KINUYO TANAKA (Primeira Parte)

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1953: KOIBUMI (CARTA DE AMOR), 1953

No ano de produção a que corresponde o presente filme, o primeiro da actriz agora no papel de realizadora, o Japão sofria ainda as consequências da ocupação americana levada a cabo após a derrota sofrida na Segunda Guerra Mundial. De facto, os Estados Unidos haviam dado por concluída a sua missão “pacificadora” naquele país, sem no entanto abandonarem as suas zonas de influência na mais vasta e complexa configuração geo-estratégica, mantendo as suas posições no mosaico constituído pelo Japão e por outros países asiáticos, sobretudo os que garantiam a sua presença na vastidão do oceano Pacífico. Muitos foram os cineastas, mesmo quando antes se confrontavam com a censura das autoridades de ocupação, que assinaram obras onde se reflectia, com artes de subtileza e cumplicidade próprias do milenar modo de ser oriental, uma abertura para assuntos que procuravam criar um ambiente favorável a um regime democrático, entre eles o papel que a mulher deveria ocupar na sociedade. Filmes que sublinhassem as virtudes da nova realidade circundante, a liberdade de pensamento consentida, alguns com a noção muito vincada de ir beber a inspiração, claro está, ao chamado “American way of life”. Filmes que contribuíssem para retirar as máscaras que escondiam os meandros da corrupção, do florescente mercado negro, das sempre visíveis manifestações de uma certa marginalidade organizada que invadia o quotidiano, as ruas e vielas das grandes cidades e as rotinas de quem sobrevivera aos horrores do regime militar. Uma atmosfera social e de recuperação económica que incluía fenómenos muito pouco recomendáveis associados aos meandros da prostituição e a uma submissão cada vez mais sistemática a padrões passageiros, plutocráticos e de baixo cálculo egoísta que iam contra o modelo de vida habitualmente conservador da maioria dos japoneses. Diga-se, nem sempre no campo da moral e dos costumes, mas mais no campo das matérias identitárias relacionadas com os valores sociais e culturais prevalecentes antes da guerra e que para alguns se estavam a perder com a ocidentalização relativamente forçada, pelo canto da sereia e pelos modelos de comportamento Made in USA ou similares. Será pois neste clima de efervescência (onde se desenhava uma nova ordem marcada pelo cruzamento entre a manutenção do que restava do velho mundo e os novos horizontes importados do estrangeiro, as quimeras do consumo que então se abriam aos olhos dos que desejavam esquecer as agruras do passado, quer quisessem quer não) que iremos encontrar os diversos protagonistas de CARTA DE AMOR. Baseado no romance de Fumio Niwa, o argumento foi escrito por Keisuke Kinoshita, importante realizador e argumentista, um dos nomes grandes da cinematografia japonesa. Era como que uma caução de um representante da indústria em apoio daquela que como ele desejava acompanhar os ventos de mudança, e Kinuyo Tanaka partiu assim com alguma segurança para a abordagem dos caminhos cruzados da condição feminina a nível nacional, sem esquecer os ecos do que se passava no exterior. Será ainda necessário dizer a propósito do que referimos anteriormente que, pouco antes de realizar este filme, Kinuyo Tanaka se viu envolvida numa polémica mediática em que a acusaram de se colar aos padrões americanos, após uma estadia nos Estados Unidos em 1949 como Embaixadora Cultural para as Artes.

Carta de Amor
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E que podemos então ver nesta, ou melhor, neste CARTA DE AMOR? De forma breve podíamos resumir o argumento ao percurso e contradições de um veterano de guerra que, regressado da frente de batalha, procura encontrar aquela que deixara quando fora mobilizado, a mulher amada e sonhada nas longas noites do conflito que acabou por gerar uma depressão mais ou menos generalizada na psique dos japoneses, mesmo dos que nunca estiveram ao lado dos militaristas fascistas e do demagógico endeusamento do Imperador. Deste modo, iremos conhecer Reikichi (interpretado pelo magnífico Masayuki Mori), homem melancólico e desadaptado do mundo civil, que por um acaso da sorte ou do azar encontra uma actividade compatível com as suas habilitações, passando a exercer o papel de escriba de cartas de amor, ou melhor, cartas do vigário amoroso escritas em inglês, língua que ele domina ao contrário da maioria dos seus interlocutores, a pedido de prostitutas que as enviam a americanos com quem andaram enroladas. Cartas que inventavam vidas e paixões fictícias onde sistemáticos pedidos de dinheiro faziam a diferença, numa chantagem emocional que não ficava muito longe do puro e duro gangsterismo sentimental. No perfil que concebe para aquelas figuras do submundo e das margens, Kinuyo Tanaka não revela qualquer solidariedade, e parece óbvio que se distancia das atitudes reprováveis de quem vive de expedientes. Mas, por outro lado, não podemos dizer que ela ignora ou não procura compreender a razão das mulheres e, por extensão, dos homens, que agem com semelhantes subterfúgios. De certo modo, ela sabe que há motivos de sobra para cair nessa degradação física e moral, que pouco ou nada se compara ao comércio do corpo em ciclos de paz nem aos casos mais rafeiros de corrupção das almas. Na guerra, assim como no pós-guerra, para sobreviver vale quase sempre a lei do mais forte e, bem vistas as coisas, enfim, pelo menos de um ponto de vista cínico, aquelas mulheres estão de algum modo a vingar as vicissitudes de uma vida que em muitos casos foram obrigadas a adoptar para dar sustento a uma família próxima ou a uma prole, quantas vezes indesejada e fonte de estigmatização devido aos filhos revelarem os óbvios sinais de uma relação dita pecaminosa, geralmente por parte dos profissionais da hipocrisia. Todavia, Reikichi possui outras motivações, nomeadamente uma fotografia e uma carta da sua amada, e procura um rumo para si mesmo com outras soluções. Mais uma vez, por artes do destino e por causa das cartas que escreve, vai encontrar a ausente Michiko (Yoshiku Kuga) que de forma insistente procurava nas ruas e nos caminhos cruzados da grande cidade. Esta casara-se, num casamento forçado pelos pais. Mas essa revelação não supera uma outra maior e mais dramática. Ela ficara grávida de um americano. Dá-se então uma reviravolta no modo como Reikichi encara esta reaproximação e como perspectiva o futuro de ambos. Tudo isso será descrito com uma grande acuidade visual, uma direcção de actores extremamente segura e eficaz, conjugada com uma planificação clássica mas apoiada nos meios de produção de uma das relativamente mais modestas companhias cinematográficas de então, os Estúdios Shintoho. Estes, ao invés de limitarem a criatividade da realizadora, levaram-na, junto com os seus colaboradores, a procurar nos locais de rodagem, reais e sem grandes ou nenhuns artifícios cenográficos, uma frescura de movimentos quase ao estilo documental e uma atmosfera de verdade que nos dá bem a medida do ambiente que se vivia numa metrópole onde, como em Berlim e muitas outras cidades bombardeadas, subsistiam cicatrizes na arquitectura e no modo como as populações se adaptavam ao processo de reconstrução material e espiritual. Porque o que está sobretudo em causa neste CARTA DE AMOR será, sem sombra de dúvida, a visão cuidada e sincera e a reflexão, sem rodriguinhos melodramáticos, das consequências da guerra nas relações físicas e sentimentais.




Carta de Amor, em análise
Kinuyo Tanaka

Movie description: Lançado um ano após o fim da ocupação americana do Japão, a estreia de Tanaka na realização explora os conflitos profissionais e pessoais de Reikichi, um veterano repatriado que procura o seu amor perdido enquanto traduz cartas românticas de prostitutas japonesas para soldados americanos

Date published: 6 de April de 2023

Director(s): Kinuyo Tanaka

Actor(s): Masayuki Mori, Yoshiko Kuga, Jûkichi Uno, Jûzô Dôsan

Genre: Drama, 1953, 96min

  • João Garção Borges - 75
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