A Comuna, em análise

Em A Comuna, Thomas Vinterberg tenta construir um retrato de habitação coletiva ao mesmo tempo que examina a implosão de um casamento na Dinamarca dos anos 70.

a comuna

Numa casa vazia, um casal e a sua filha decidem testar a propagação do som naquele que é possivelmente o seu futuro lar. A filha e a mãe vão até ao último andar, enquanto o pai vai para o espaço debaixo da escadaria principal. Como a matriarca, chamada Anna, quer convencer o seu marido a ficar nesta casa, ela abre a porta da habitação onde ela está com a filha. É uma batota inocente e a filha assobia uma melodia. A câmara volta à escadaria e desce-a lentamente, saboreando a luz dourada do sol do fim do dia. Aí, nunca enfatizando nada em demasia, a câmara de Thomas Vinterberg mostra-nos que a porta do pai também está entreaberta. Mesmo discordando, o casal está em silenciosa sintonia e a família é assim apresentada como uma unidade. Mais tarde, no filme, vemos Anna no seu trabalho no estúdio de televisão local depois de uma série de revelações e conflitos com o marido. Um dos projetores é virado para ela e, cobrindo os olhos, ela coloca a mão em frente à face. Aí Vinterberg corta para a perspetiva dela que observa a sua mão banhada pela luz artificial. Anteriormente no filme, esta mesma imagem havia sido mostrada depois dela ter sexo com o seu marido, num momento de calorosa intimidade. Agora, essa intimidade parece ser falsa e vazia, e a luz do sol foi substituída por uma marca de claro artifício.

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Esses dois momentos são os pontos altos de A Comuna, o novo filme do dinamarquês Thomas Vinterberg e demonstram como este cineasta consegue, sem grande alarido, construir experiências audiovisuais de subtil complexidade humana sem chamar a atenção para a sua maravilha. Infelizmente, a razão pela qual esses dois momentos são aqui referidos é porque são ilhas de excelência no meio de um oceano de triste mediocridade. A Comuna é um dos filmes mais problemáticos na carreira deste realizador que em tempos foi o criador do primeiro filme do movimento Dogma 95. Hoje em dia, o seu estilo já se distanciou bastante do realismo ditatorial dessas experiências, sendo substituído por uma polidez mais próxima dos filmes de prestígio europeus.

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É evidente que essa nova polidez não é necessariamente perniciosa, mas há que considerar o tipo de filme que o cineasta tentou construir em A Comuna. Esta é a história de uma família que, nos anos 70 e após herdar um casarão enorme, decidem experimentar viver num coletivo, partilhando a casa com amigos e novos conhecidos. Temos assim proposta, tanto pela estrutura como pelo título, uma análise da vida neste tipo de coabitação, mas o centro da narrativa está sempre singularmente focado no drama matrimonial entre Anna e Erik, o seu marido e herdeiro da casa. Ele começou a dormir com uma estudante sua na universidade e acaba por levá-la para viver consigo na comuna, acabando por corroer a estabilidade da sua família, cuja implosão é testemunhada por Freja, a sua filha adolescente.

Uma coisa importante a apontar é que A Comuna é uma obra com ligações bastante autobiográficas à vida do seu realizador. Ter isso em conta na análise do filme é fulcral, pois Vinternerg pode começar por tentar retratar a vida neste tipo de sistema à la residência estudantil para adultos de meia-idade, mas rapidamente vemos como ele descarta essa exploração em função de um drama sobre uma família em crise. Aliás, por muito polida e solarenga que seja a fotografia, à uma contracorrente de escárnio que marca toda a narrativa, sempre mostrando o ridículo e as falácias nas filosofias New Age em voga nos anos 70 com uma atitude feroz e discreta no seu veneno.

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Isto não teria de ser um problema, mas Vinterberg claramente estruturou este projeto em volta da criação da comuna, sua crise e final reconciliação. Depois do adultério ser trazido à luz de todas as personagens, parece que o filme se esqueceu do que estava a fazer como se fosse uma criança com défice de atenção. A consequência de tudo isto é que nunca temos em efeito uma comunidade bem estabelecida. O desenvolver das personagens e da sua dinâmica é ora ignorado ora tratado como algo dispensável e que tem de ser despachado o mais rapidamente possível, criando uma experiência desequilibrada de um ponto de vista estrutural e incompetente a um nível dramático. Numa cena mais tardia, quando uma decisão fulcral é posta a votos durante um jantar, toda a situação é filmada como se este fosse o culminar de uma série de desenvolvimentos anteriores na comunidade, mas como Vinterberg nunca investiu nenhuma atenção na dinâmica coletiva, o resultado é a abjeta anemia emocional.

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Mas, como a nossa inicial descrição dos dois momentos de sublime cinema dentro do filme, A Comuna não é uma obra fácil de rejeitar. Para além dos ocasionais rasgos de génio da parte de Vinterberg, o elenco é bastante uniforme na sua competência fazendo o melhor que conseguem com um texto cheio de fragilidades e limitações. O único elemento que pode deixar algo a desejar é Ulrich Thomsen que, como Erik, tem uma infeliz tendência a gritar em demasia. Para compensar, Trine Dyrholm e Martha Sofie Wallstrøm Hansen são fantásticas como Anna e Freja. Dyrholm chegou mesmo a ganhar o prémio de Melhor Atriz da Berlinale, e justifica esse troféu numa sequência fantástica, onde são vomitadas uma coleção de verdades abrasivas, mas onde a atriz nunca cai no erro do exagero, preferindo sempre uma contenção emocional muito mais poderosa que qualquer uivo de angústia. São duas prestações brilhantes que, juntamente com outros elementos já mencionados, valorizam um filme que tinha o potencial para ter sido muito mais interessante e eficiente do que é.

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O MELHOR: As duas prestações das protagonistas femininas estão a um nível de excelência superior a quase todo o resto do filme. As duas cenas em que elas ouvem a verdade de Erik sobre a sua amante são filmadas de modo desinspirado, mas o trabalho de Hansen e Dyrholm torna-as em pequenas miniaturas de dor, confusão, raiva e triste resignação.

O PIOR: O argumento mal construído que estrutura o filme em função da comunidade, mas esquece-a logo que pode, que padece de ritmos erráticos e uma falta de interesse colossal em definir qualquer personagem que não pertença ao trio principal.


 

Título Original: Kollektivet
Realizador:  Thomas Vinterberg
Elenco: Ulrich Thomsen, Trine Dyrholm, Martha Sofie Wallstrøm Hansen, Helene Reingaard Neumann
Alambique | Drama | 2016 | 111 min

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