LEFFEST ’16 | Elle, em análise

Isabelle Huppert nunca encontrou um papel tão perfeito como a protagonista de Elle, uma insólita comédia negra assinada por um dos grandes provocadores do cinema, Paul Verhoeven.

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Desde a sua estreia no grande ecrã, durante a década de 70 do século passado, que Isabelle Huppert se tem afirmado como uma das mais importantes atrizes na história do cinema francófono, ou mesmo de todo o cinema enquanto meio de expressão narrativo. Nunca nenhuma atriz foi tantas vezes nomeada aos prémios César, sendo dela também o título de intérprete que mais vezes viu os seus filmes passar nas competições oficiais dos três grandes festivais de cinema europeus, Berlim, Cannes e Veneza. Com uma carreira de tais proporções é fácil começar a denotar algumas características específicas no trabalho de Huppert enquanto atriz. A sua presença é muitas vezes gélida, marcada por uma latente hostilidade e perigo que são tão assustadores como hipnóticos ao mesmo tempo que sugerem uma certa ironia condescendente à sua postura em relação a tudo e todos. Tal abrasividade faz com que, mesmo nos seus papéis mais calorosos, a atriz consiga sugerir uma complexidade e feiura visceralmente humanas.

Tudo isto para dizer que o papel de Michèle Leblanc, a protagonista de Elle, é aquele que a atriz passou toda a sua carreira a sugerir, uma sublimação de todos os seus atributos e talentos depurados até se chegar a uma supernova pulsante que nunca poderia ser interpretada por outra pessoa que não Isabelle Huppert. E, de facto, se não fosse Isabelle Huppert todo o filme descarrilaria, sendo este um dos mais complicados, contraditórios e arriscados textos na carreira do provocador Paul Verhoeven. De forma resumida, Leblanc é uma empresária de sucesso no campo dos videojogos que impõe a sua vontade a todos os que a rodeiam com a imperiosa autoridade de uma déspota. Ela é divorciada e vive sozinha com o seu gato, por muito que seu filho adulto e ex-marido sejam uma presença constante no seu dia-a-dia, injetando uma boa dose de patética fraqueza na sua vida. Uma mulher poderosa e portadora de uma presença magnética, ela é, mesmo assim, um pária da sociedade devido ao seu pai que, durante a infância da filha, assassinou uma série de pessoas e envolveu Michèle nos seus crimes.

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Apesar de todas estas coloridas facetas da vida quotidiana de Michèle, Elle não é meramente um retrato do dia-a-dia desta mulher. Afinal, o filme começa com um plano do seu gato que vidrado testemunha aquilo que para nós, não passa de um pesadelo sonoro, a entrada de um intruso na casa de Michèle e sua subsequente violação pelo misterioso homem mascarado. Se uma pessoa fica chocada com a violência desta abertura, então Elle será um desafio insuperável pois, como que numa direta provocação da sua audiência, Verhoeven tem a audácia de repetir este momento várias vezes, com pequenos detalhes alterados e dando assim, à sua atriz principal, a oportunidade de interpretar este momento seminal através de uma série de diferentes prismas e abordagens.

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No entanto, por muito chocante que seja a violação, ainda mais estarrecedor é a reação de Michèle, ou melhor a sua não reação. Longe de se mostrar como uma vítima traumatizada, ela levanta-se, limpa a confusão e o serviço de chá partido e volta à sua vida, chegando mesmo a relembrar-se do evento com o que parece ser excitação erótica. As ambivalências do desejo sexual são complexidades humanas que o cinema quase nunca está disposto a confrontar mas Verhoeven não se fica por aqui, nem pensar. Nas cenas seguintes, especialmente um insólito jantar em que Michèle revela ao ex-marido e melhor amiga que foi violada, algo se torna bastante claro em relação a este estranhíssimo filme. Elle, apesar das suas temáticas tabus e representação do rescaldo de uma agressão sexual contra uma mulher insuspeita, é uma comédia.

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E essa comédia não nasce somente da ironia e timing mortífero com que Huppert fala os seus diálogos, mas também do texto, adaptado por David Birke e Harold Manning de um romance escrito por Philippe Djian. Neste argumento, que é um dos mais deliciosos e incomuns do ano, estes autores masculinos quebram todas as regras do bom gosto e do politicamente correto, sendo que algumas regras devem ter sido conjuradas simplesmente para que este guião lhes cuspisse na cara. Elle é, por conseguinte, um filme propulsionado por uma cataclísmica quantidade de mau gosto e impetuosidade artística que, apesar de tudo isso, consegue ser também uma obra onde a misoginia da sociedade contemporânea é apropriada por uma mulher vitimada por um agressor sexual e usada como arma do poder feminino contra os homens e, verdade seja dita, todas pessoas possuidoras de um pénis em Elle são uma cambada de imbecis ora odiosos ora risíveis.

Num mundo como o nosso, em que o termo feminazi é algo horrivelmente comum em debates dentro e fora do anonimato da internet, Michèle é o maior pesadelo de qualquer homem inseguro e antifeminista. Ela engloba a sistemática demonização feita pela nossa sociedade às mulheres, sendo uma versão humana dos conceitos de grotesco feminino, mas, ao mesmo tempo, ela é uma monstruosa e inspiradora agressora que transmuta as próprias agressões subjugantes contra ela numa fonte para o seu prazer pessoal e se vinga dos seus abusadores. No centro de Elle está uma exploração de uma psicologia feminina amoral que, a um comum espetador, parece perfeitamente impossível e contraditória, ou ofensiva, mas existe Huppert e ela é a chave que põe o mecanismo fílmico a trabalhar com obscena perfeição. Nas suas mãos, Michèle é um ser humano coerente e é, talvez, a pessoa menos capaz de ser vitimada que o cinema contemporâneo alguma vez retratou, de tal modo que é uma delícia vê-la simplesmente existir.

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Mesmo o mistério de quem violou Michèle é resolvido de modo surpreendentemente rápido, sendo que, apesar dos seus apelos à linguagem de thrillers, Verhoeven não tem o mínimo interesse em fazer uma obra que se foque em criar suspense. Afinal, tais devaneios iriam distrair a audiência de Michèle e de Isabelle Huppert, a quem a câmara do cineasta holandês filma com marcada reverência. É óbvio que Verhoeven a olha como um ser superior, nunca se atrevendo a julgar, com qualquer tipo de fútil moralismo, as suas ações ou a castigar os seus desejos com um final punitivo. Afinal, olhando a magnificência de Isabelle Huppert neste papel, quase dá medo pensar o que aconteceria se alguém se atrevesse a aplicar punições moralistas à sua personagem. Provavelmente seria fulminado com um olhar da rainha do cinema francês.

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Em conclusão, Elle é um espetáculo de mau gosto que leva o cinema da provocação a níveis até antes inimagináveis sem nunca recorrer ao tipo de pueril e juvenil choque que é preferido por tantos outros cineastas como Harmony Korine ou Gaspar Noé. Há uma elegância e sofisticação em Elle que o tornam ainda mais venenoso do que já seria somente como sua proposta narrativa e com Isabelle e Verhoeven ao volante. No final, esta é deliciosa sobremesa de ácida amoralidade, profundamente imprevisível e fora dos padrões contemporâneos do que é socialmente aceitável, inquietante e provocador como poucas obras de arte alguma vez se atrevem a ser. Em suma, um imperdível e atrevido triunfo que está destinado a provocar tanta devoção como ódio.

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O MELHOR: A deusa Huppert!

O PIOR: A relativa insipiência na sua construção visual. Se a banda-sonora tem alguns toques de sedutoras melodias Hitchcockianas e os cenários sugerem um mundo de detalhes perversos mas credíveis, a fotografia e o enquadramento de Elle pouco mais fazem que acrescentar uma paradoxal dose de banalidade a um filme e história que nada mais têm de banal ou confortável.



Título Original:
 Elle
Realizador: Paul Verhoeven
Elenco:
 Isabelle Huppert, Laurent Lafitte, Anne Consigny, Charles Berling

Midas Filmes | Comédia, Drama, Thriller | 2016 | 130 min

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